O NATAL DE 2020 DO VELHO PADRE E DO GATO PRETO >> Zoraya Cesar

O Gato Preto andava de um lado para outro no recinto penumbroso e vazio. Pelo único vitral entrava a luz cinza azulada de um anoitecer nublado. Chovia muito. Se o Gato estivesse em seu estado de humor britânico natural teria pensado ‘it’s raining cats and dogs’. Mas, como não estava, registrou mentalmente, apenas, que chovia torrencialmente. 

O tamborilar violento das gotas de chuva no teto, que sempre lhe alegraram, estavam irritando seus nervos felinos. Aconchegou-se junto a São Francisco, que, tirando uma escova da túnica, escovou-o carinhosamente. Depois de quase vinte minutos, o Gato, novamente impaciente, voltou a se esgueirar entre os bancos, a pular nos altares. Só tinha milagreiro peso-pesado naquela igreja, resmungava, cadê o milagre de Natal? Cadê o Velho Padre?

Os Santos e Santas ‘milagreiros peso-pesados’ também inquietos, pelo tardar da hora sem notícias, cogitavam sobre o tempo de esperar e o tempo de agir. Foi então que a voz suave de Nossa Senhora levantou-se numa cantiga de ninar, e chamando o Gato Preto para junto de si, acomodou-o na manjedoura, ao lado de um Menino Jesus agitado pelo som da chuva e do vendaval que se formava lá fora. A primeira mágica da noite aconteceu. Todos os corações se acalmaram, e o Espírito de Natal entrou, delicadamente, no ambiente. 

O Gato Preto, sempre apaixonado por Nossa Senhora e pelo Menino, reassumiu seu autocontrole. Não tinha receio de que o Velho Padre morresse, isso já ocorrera outras vezes e, sendo ambos transeuntes entre os mundos, sempre seguiam juntos. Seu receio era de que o Velho Padre, o Velho Amigo de tantas vidas e jornadas não chegasse a tempo de comemorar sua data festiva preferida, ou que morresse longe de casa e dele, do Gato Preto. Nunca o Velho Padre desencarnara sem o Gato Preto em sua companhia. 

Dez da noite! Hora da segunda mágica natalina. De repente, todos os Santos saíram de seus nichos e começaram os preparativos para a festa. 

Santa Marta e São Lourenço foram para a cozinha, junto com São Benedito. São Miguel Arcanjo tratou de limpar e proteger o ambiente, pressentindo que algo extraordinário estava por acontecer. Liderados por São Gabriel, um coro de Anjos começou a ensaiar uma cantata de Natal maravilhosa, que ouvido humano algum jamais escutara. Santa Clara se encarregou das luzes e Santa Sara dos enfeites. São Francisco, São José e os pastores cuidaram dos animais da manjedoura, enquanto Santa Teresinha das Rosas espalhava aromas perfumados em todos os cantos e São Judas Tadeu ajudava Nossa Senhora a cuidar do Menino, tão novo e já tão levado e brincalhão. 

E assim, cada um fazia a sua parte para que a festa de aniversário fosse, como deve ser, uma ocasião de alegria e esperança. O Gato Preto, à porta, recebia Espíritos de Luz, obreiros em hospitais e clínicas, que, pelo mundo afora cuidavam dos doentes e que agora, mais que nunca, eram chamados a ajudar. Aquele era um momento em que podiam, por alguns instantes mágicos, desfrutar da convivência de Espíritos Maiores, e conversar sobre a missão à qual se entregaram, por um chamado que poucos podem entender. 

Perto da meia-noite, a terceira mágica, que, fechando a tríade, concretizou o Milagre de Natal que o Gato Preto tanto esperava. 

Um guarda-chuva da Pickett, 
um luxo. 
Mas não é a soberba
um dos 
pecados capitais?

Um demônio bem apessoado, de pele avermelhada e reluzentes olhos de tição em brasa, elegante em seu terno Armani cinza, desceu de um BMW, abriu um guarda-chuva da Pickett (uma das mais afamadas – e caras – marcas inglesas) e ajudou, cuidadosamente, uma figura cambaleante a sair pela porta do carona. O Velho Padre!

O Gato Preto ronronou, feliz. O Velho Padre, embora exaurido e trazido por um demônio, parecia bem. O que importava é que ele voltara, depois de incontáveis dias visitando e confortando doentes internados por Covid, isolados de suas famílias nessa época natalina. (Por que o Velho Padre pode ter contato com pessoas sem transmitir, contaminar ou pegar Covid, a ciência dos homens não explica. Eu até poderia explicar, mas fica pra outra vez. É Natal, a festa dentro da igreja já está acontecendo e o Velho Padre está com fome e querendo confraternizar com os amigos, descansar um pouco).

- Sou Pisac, chefe da 2a Horda do 1o Círculo Infernal. Encontrei-o num hospital quando fui pegar uma alma maldita. Ele estava cansado e preocupado em chegar atrasado. O meu dono e mestre sempre nos ordena a ajudar o Velho Padre. Cumpro ordens.

O Gato Preto, São Miguel e São Pedro ouviram o antigo demônio, conhecendo-o, todos, desde tempo imemoriais. E todos sorriram por dentro. Sabiam que, além de cumprir ordens, não eram poucos os demônios que respeitavam e até gostavam do Velho Padre. Mas, educadíssimos que eram, mantiveram as aparências. 

O demônio ficou parado uns instantes na porta. Ainda chovia muito, mas ele permanecia impecável (alguns demônios são impermeáveis). E hesitante. Parecia um tanto triste.

Nesse momento, mais uma das magias que só acontecem mesmo no Natal. 

O Velho Padre voltou-se e acenou para ele. O demônio sorriu. Já não iria embora com o coração deserto. E, de repente, São Bento, patrono dos exorcistas, saiu de um canto e convidou o antigo demônio a entrar. 

Pīṣ̄āc quase boquiabriu-se. Era tudo o que queria, Permissão para ficar um pouco, lembrar da época em que ainda vivia no céu, conversar com antigos conhecidos.

Assim que entrou, sua pele voltou ao normal, os olhos perderam o brilho sinistro. Ele tirou o terno e  os sapatos, e ajoelhando-se, beijou a ponta do manto de Nossa Senhora a única contra a qual nenhum demônio tem qualquer poder. 

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O Gato Preto, aquietado, passou a noite observando São Miguel, São Bento e Pīṣ̄āc filosofando sobre as fraquezas humanas e a salvação. São Sebastião e Sto. Expedito lembrando o tempo em que serviram ao exército. Santo Antonio devorando o tiramisu que só Santa Rita de Cássia sabia fazer. O coro angelical, afinadíssimo. Nossa Senhora conversava com Santa Catarina Labouré enquanto São Benedito brincava com o Menino. 

O  Gato Preto sabia que, ao amanhecer, tudo voltaria ao que era. Mas todos voltariam mais felizes. Principalmente o Velho Padre, que, bebericando um vinho trazido por São João da Cruz, comentava com Santo Antônio de Sant'Ana Galvão  que, realmente, festas de aniversário eram suas preferidas. Eram tantos os milagres! 

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O Velho Padre, o Gato Preto e eu desejamos a todos vocês que a energia amorosa do Natal opere grandes e delicados milagres em suas vidas. 
E que 2021 seja um ano repleto de gentilezas. 
Muito obrigada pela leitura, pelos comentários, pelo carinho. 


Comentários

branco disse…
e olha que andamos precisando de fé para conseguir os milagres.....bem um já acontece...vc escreve !
Erica disse…
Você conseguiu subverter até demônios!?
Demônios bonzinhos...o verdadeiro milagre de Natal :-)
Beatriz disse…
Adorei o gato preto, mal humorado e fofo ao mesmo tempo, exatamente como a maioria dos gatos parecem ser.
Márcia Bessa disse…
Adorei! Gostei até do demônio.... rs
Parabéns, você arrasa!!
Marcia Bessa
Marcio disse…
Conjecturas de um leitor atrasado:
1 - O Velho Padre pode circular à vontade pelos hospitais, graças a seu histórico de atleta;
2 - O demônio gente boa - aliás, solicita-se a origem desse nome atribuído a ele - usa Armani e dirige BMW porque Zoraya Cesar é, digamos assim, subvencionada pela Ermenegildo Zegna e pela Mercedes Benz.

Certeza de um leitor atrasado: Natal é, além de tudo, época de ler textos do Velho Padre.
Nadia Coldebella disse…
Que lindo Zô! Quem dera nossa mundo deixasse as divergências de lado e se unisse, todos, sob a luz desse menino e a bondade dessa mãe! Feliz Natal e rezemos por dias melhores!
Albir disse…
Um milagre de natal, uma pausa nos assombros. Gatos pretos do bem, demônios respeitosos e convidados a participar da festa na igreja. Tomara que no próximo ano os santos retribuam a visita, quem sabe ajudando a melhorar a vida no inferno. Vamos sonhar grande - é natal! E hoje vou dormir em paz! Beijos, Zoraya!
Tô atrasada pro Natal do Velho Padre, mas sempre é tempo de dar graças pelas bênçãos e milagres... Que o maior milagre seja uma vida sem doenças contagiosas e letais e a gratidão fica por conta da amiga que transmite apenas boas energias em suas histórias
Alfonsina disse…
Amei seu conto de Natal Zoraya! As descrições das tarefas Dos Santos, os personagens do gato e preto e do padre (que eu não conhecia), a redenção do diabo... tudo muito gostoso de ler e imaginar!
Zoraya Cesar disse…
branco - bem dito. conseguir escrever nesses tempos é mesmo milagre!

Érica - eu nao verto nem subverto kkkk, foi o milagre de Natal! E até os demônios precisam lembrar de onde vieram de vez em qd...

Beatriz - vc captou à perfeição a personalidade do gato. E obrigada por ter vindo!

Márcio - como sempre, seus comentários me fazem rir! Ermenegildo Zegna, hummmmm. E vc sempre diz que o Natal é época de ler o Velho Padre. Isso me emociona.

Albir - hahaha, Albir, tenho certeza q vc bem sentiu falta de um sustinho. Mas, falando sério, Dom Albir, seu comentário, sempre delicado e muito esperado! E olhe, vc me deu uma ideia!!!

Nádia - pois é. A cada Natal nos renasce essa esperança. E que ela sobreviva a tudo, Amém.

Aninha - Amém!

Alfonsina! - estreando no comentário e já com suas gentilezas!

A todos, um ano novo repleto de Natais. Muito obrigada.

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