AUTO DA REPETIÇÃO >> Albir José Inácio da Silva
Natimorto estaria mais certo, mas viveu, o
embaraço. Escapou de outras mortes por fome, por sede e por decreto.
Sem teto, sem água, sem pão nem pedra pra recostar a cabeça, foi pra Capital. Alimentou
multidões com quase nada — cinco pães e dois peixes.
Sem ter estudado, deu lições aos doutores e escolas aos gentios. Distribuiu
milagres como não ousaram ou não puderam fazer os santos e sábios. Atraiu
multidões, invejas e ódios.
Abominou as ordálias, as fogueiras, as cruzadas. Combateu o quinto, o dízimo, a
derrama e as capitanias hereditárias.
Lutou contra a escravidão, os açoites, a compra de gente e a venda de carne
humana.
Brigou por salário-mínimo, carteira, férias. Condenou o trabalho das crianças.
Confortou condenados nas câmaras de gás, fornos crematórios e limpou vômitos no
pau-de-arara.
Mas, para delírio da plateia, debaixo de vara, estampou as manchetes.
Diverte-se agora o absoluto julgador:
— Sabes que tenho poder para salvar-te ou condenar-te?
— Todo poder emana do povo.
— Basta! Levem-no ao Tribunal.
Espremido entre a mídia, a multidão e o medo da história, o Pretório
contemporiza:
— Não provamos nada. Vamos açoitar e soltar. Não queremos mártires ou
heróis. Barrabás, ao contrário, tem contas na Suíça, culpa no cartório e batom
na cueca.
Mas a turba se inflama, bate panelas e estende os braços na saudação anauê:
— Solta Barrabás! Solta Barrabás!
(Este texto integra o
Projeto Crônica de Um Ontem e foi publicado originalmente em 04/04/2016)
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