O MARTELO DO BEM - Nona parte >> Albir José Inácio da Silva


(Continuação de 02/12/2019)

Batidas na porta.

De novo, batidas sem intervalo. Pelo barulho, chutes na porta.

Déti pula da cama e corre até a sala escura. A porta é arrombada. Vultos aparecem na claridade da lua. Déti acende a luz, eles entram na casa.

- Fora da minha casa agora! – grita ela, levantando uma enxada que ainda tinha o cabo envolto em jornal.  – Se saírem vivos daqui, vão pra cadeia!

São três e usam meias finas na cabeça. “Três idiotas”, pensa Déti, “mesmo vestidos de astronautas eu reconheceria os cães de guarda da Penha”. Apesar do pouco tempo ali, já tinham ouvido algumas histórias sobre eles. Histórias cochichadas como se uma culpa comum ligasse pessoas que se calaram sobre crimes.
                                                                
                                                                        Os Josés

Nasceram há aproximadamente duas décadas entre trabalhadores semiescravos de um sítio afastado. Cresceram brincando na lama dos chiqueiros, comendo frutas silvestres quando as encontravam e trabalhando logo que puderam levantar algum peso. Os adultos da família somavam o trabalho infantil à sua produção e os patrões queriam mais produção.

Sofreram de pais, vizinhos, patrões e estranhos todo tipo de exploração e abuso em que ninguém gosta de pensar.  Silenciaram os “cidadãos de bem” diante da violência contra mulheres e crianças, sob o argumento de que não se mete a colher em briga de marido e mulher ou de que precisavam ser educadas. Mais recentemente, quando não era mais possível justificar essas barbaridades, optou-se pelo silêncio ou, quando muito, pelo sussurro.

Os Josés foram salvos na adolescência porque a fazenda foi fechada sob acusação de trabalho escravo. Antes disso os parentescos nunca ficaram muito claros, mas sabe-se que uma das mães foi morta por um dos pais, que por sua vez foi morto por outro possível pai que acabou preso. E assim ficaram os três livres, juntos e abandonados à própria sorte.

Começaram a praticar furtos nas casas e sítios da região. Apesar das reclamações, o Sargento não os queria prender porque não acreditava nessa justiça de inquéritos e processos. Acreditava na sua justiça. Sabendo que acabariam soltos pelo juiz da infância, reuniu seus poucos policiais e alguns homens de bem do lugar e aplicaram nos meliantes uma surra que a cidade jamais esqueceu, “uma surra de dar bicho!”

Mas isso não os curou definitivamente. Donizeti não acreditava mesmo na recuperação daquelas sementes do mal, “pau que nasce torto morre torto”. E de fato continuaram em sua carreira de crimes. Donizeti planejou matá-los. Só a intervenção milagrosa da Irmã Penha, que garantiu ao policial que eles mudariam de vida, pode evitar a execução.

O milagre alcançou também o próprio Sargento que, se não mudou sua descrença na legalidade, mudou pelo menos seus métodos. Com muito esforço conseguia não acreditar nos Josés, mas tolerá-los.

Após o livramento acompanhado de sermão, eles acreditaram que tudo o que lhes acontecia era castigo divino, pelo seu comportamento e pelo pecado original, e passaram a seguir cegamente tudo que dizia a reverenda. Ela os classificava segundo o antes e o depois: antes trio assombro, depois trio ternura.

E é esse trio ternura que agora assombra a casa das duas.

- Onde está o menino? – grita Zé Pedro, enquanto arranca com facilidade a enxada das mãos de Déti e empurra-a contra a parede.

Margô chega na sala e avança contra o agressor, mas Zé João a segura a enfermeira pela cintura e  joga contra Déti já caída num canto da sala.

- Que menino, seu idiota? Aqui não tem nenhum menino! – berrou  Déti, enquanto tentava se levantar, mas Zé Pedro a impediu com a sola do pé no rosto. O sangue apareceu na testa, na linha do cabelo e no supercílio.

- Vocês vão falar por bem ou por mal!

Zé Antônio volta do quarto com a máscara do Batman na mão:

- Ele não está mais na casa, mas esteve! Nem sabemos se ainda está vivo!

Margô consegue se levantar e atira um pote de cerâmica que atinge Zé Antônio na cabeça. Ele desfere um soco que a joga de volta no chão. O sangue desce do nariz de Margô.  

Zé Pedro volta da cozinha com uma lata na mão e despeja sobre as duas. O querosene que escorre para o chão está vermelho de sangue. O interrogatório continua, agora com a caixa de fósforos nas mãos.

- Vocês são loucos! – protesta ainda Déti.

- E vocês são bruxas! Onde está o menino?

Zé Pedro risca o fósforo.

(Parte final em 15 dias)

Comentários

branco disse…
wow, cada vez melhor..aguardemos.....
Sandra Modesto disse…
Instigante. Vejo um realismo profundo. Parabéns pela estrutura narrativa.
Zoraya Cesar disse…
Albir, vc fala de mim e da Nádia, mas serei EU a te cobrar tranquilizantes. Aguarde a conta. É Natal. Milagres acontecem, veja bem o que vai fazer...
Albir disse…
Obrigado Lord, Sandra e Zoraya, pela paciência e carinho da leitura.

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