UM ADEUS >> Carla Dias >>
A morte sempre me cutucou o entendimento. Quando menina, já me sentia intrigada pelo assunto, e me intrometia nas conversas dos adultos, querendo saber mais sobre quem foi e o que ficou daquela pessoa. Mais tarde, transitei por algumas leituras e religiões. Era curiosidade, inquietação e uma série de questionamentos. Depois veio a ciência e tudo se misturou: o explicável e o inexplicável. O comprovado e o sobrenatural.
A morte sempre alimentou a minha curiosidade.
Com o tempo - e com as pessoas que foram partindo -, compreendi que está aí um tema que jamais se esgotará, porque faz parte do plano do universo mantê-lo assim. Morre-se metaforicamente e de fato, de realidade nem sempre roteirista de partida natural. Há vezes em que fica a sensação de que a pessoa foi arrancada da história dela, dos braços daqueles que ela acolheu, durante a vida.
O primário e o ginásio eu cursei na mesma escola, lá na Represa, em Santo André, São Paulo. Estudei na João Baptista Marigo Martins. Foi lá que aprendi que a vida é diversa, complicada, nem sempre justa, mas que também é repleta de oportunidades para se conhecer o novo, repensar o definido, ser gentil em situações em que a gentileza salva o dia e até mesmo a vida de alguns. Foi lá que aprendi a escrever, do alfabeto aos primeiros poemas. Ganhei uns xingamentos, uns amigos e conheci alguns professores dos quais jamais me esquecerei.
Lá trabalhava a Dona Penha.
Vizinha, eu, minhas irmãs e primas brincávamos com as filhas dela: Sandra, Andréia e Silvia. Depois vieram Eduardo, Sheila e Andressa. Uma cerca de madeira dividia os quintais. Era comum perguntarem sobre uma das crianças e alguém responder “pulou a cerca”, ou seja, ela estava na casa da Dona Penha.
Brincávamos e brigávamos, coisa de criançada reunida. No final das contas, éramos todos do mesmo lugar, encarando alguns mesmos desafios, tentando sobreviver a uma vida que não estava muito a fim de facilitar as coisas para nós. Ainda assim, contávamos uns com os outros, pulávamos a cerca para brincar, para acudir, para compartilhar o pouco que tínhamos, para participar uns da vida dos outros.
Não seria diferente na morte, não é mesmo? Ainda que, no tempo e na geografia, tenhamos nos afastado.
Dona Penha era vizinha de cerca, amiga da família e também merendeira da escola onde estudávamos. Na verdade, nós a encarávamos como a dona do lugar. Quando era necessário colocar ondem no recinto: chame a Dona Penha! E lá vinha ela, a testa franzida, pronta para resolver o problema, colocar cada um no seu devido lugar e todos na sala de aula. Quando havia confusão que não conseguíamos resolver, ameaçávamos: vou chamar a Dona Penha! Quando tínhamos qualquer problema pessoal, que nossos pais não estavam ali para resolver, falávamos com ela. Todos confiávamos que ela cuidaria de nós. E ela cuidava.
Como eu disse, o tempo e a geografia nos separaram, depois de eu me mudar da Represa. Contudo, nunca houve distância no afeto e no respeito que eu tinha por ela. Na verdade, que sempre terei.
Dona Penha partiu desse mundo, mas permanecerá na memória e na história de muitos dos que passaram pela escola João Baptista Marigo Martins, dos que viveram e ainda vivem na Represa.
Só posso agradecer a oportunidade de ter conhecido essa mulher que sempre cortou um dobrado para cuidar da família e dos agregados, porque Dona Penha era da acolhida. Com ela, aprendi que sim, pessoas fazem diferença. Que pode estar tudo muito complicado, e você ser minoria em busca de uma solução necessária, mas pessoas fazem a diferença.
Perguntem aos amigos da Dona Penha, e a todos os alunos e professores que conviveram com ela pelos corredores e salas da escola.
Boa viagem, Dona Penha.
carladias.com
Comentários
Não tenho mais o que comentar. Porque estou chorando de soluçar. Só isso.
a eterna cidade tem mais um morador feliz e você, minha cara amiga, me respondeu , em pensamentos, sim para todas as minhas perguntas.
Whisner, fiquei aqui pensando que, se você a tivesse conhecido, realmente gostaria dela.
Zoraya, obrigada a você. E que apareça uma Dona Penha na sua vida, porque você merece.
Albir, é isso... As pessoas que nos ajudam a ser.