A MELHOR AMIGA >> Zoraya Cesar
Meio homem, meio pássaro, o ser encantado finamente entalhado em madeira negra tinha um rosto assustador. Bicudo, maxilares salientes, a boca torta, num esgar sardônico e debochado. Tinha o semblante amargo dos invejosos. Os olhos vazios pareciam vivos de crueldade e malícia.
Era um amuleto contra os maus espíritos, explicara Agnes ao entregar o presente. Camila acreditou, e por que não? Sempre acreditara em sua melhor amiga de infância.
A vida é um campo de energia. Cuidado com o que coloca no seu campo vibracional. |
A vida, com suas manobras surpreendentes, acabou por afastar as amigas inseparáveis. De Agnes nada sabemos ao certo. Apenas que, sendo rica e bonita, saiu pelo mundo a quebrar corações, sem pouso ou rumo. Um dia, voltando de suas lonjuras, foi visitar a amiga. Camila, que sempre fora tímida e eclipsada pela personalidade exuberante de Agnes, finalmente encontrara o amor de sua vida. E, se tivera uma infância pobre, conseguira superar as dificuldades. Era feliz.
O fato é que a estátua ficou em lugar de honra na sala, para desgosto do marido de Camila, que detestara a coisa.
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No princípio, Camila creditou os inexplicáveis acontecimentos ao estresse que passava no trabalho. Andava distraída e tensa. Encontrava objetos em lugares totalmente inusitados - a chave do carro na máquina de lavar; a ração do cachorro debaixo da cama. Mas não encontrou justificativas racionais para a louça que rachava dentro do armário, sem que ninguém a tivesse tocado. Nem para os gemidos - que pareciam de dor - que a televisão, mesmo desligada, emitia.
Do dia para noite surgiam teias de poeira e de aranhas; a casa parecia estar sempre suja. Uma extensa infiltração nas paredes empesteava o ar com cheiro de terra podre. Tudo sumia, quebrava ou escangalhava. Nada mais dava certo. O casal, que nunca brigara, desentendia-se a troco de nada. O marido deixou de falar para ela jogar aquela coisa fora. Aliás, não falava mais nada, a separação era iminente. Camila sentia-se prostrada, numa profunda lassidão física e mental. E, como se não bastasse, havia os pesadelos.
Os pesadelos eram insuportáveis. Camila preferia não dormir. |
Passava a noite acordada, febril. Pois nos poucos momentos em que, exausta, dormitava, cenas horripilantes surgiam em sua mente. Acordava sobressaltada e infeliz.
Agnes ouvia tudo, olhos esbugalhados, mão no coração. ‘Ainda bem que te dei o amuleto! Imagina como seria pior sem a proteção dele!’. Camila agradecia, convencida que, realmente, imagina!
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Foi num final de tarde, modorrenta e úmida que, ao olhar para a estátua, Camila se deu conta que, definitivamente, a expressão da pequena figura mudara. Mais cruel, mais debochada. Estranhamente sorridente. Como se estivesse... satisfeita.
Não sabia o que fazer. Estaria enlouquecendo? Sentia-se dominada pela presença do homem-pássaro, não podia desfazer-se dele; além do mais, era um presente da melhor amiga! Estava confusa e assustada. Sua vida se desconstruía a passos largos. Começou a chorar. Chorou tanto, que suas parcas forças se exauriram e ela adormeceu. Dessa vez, não teve pesadelos.
Viu-se criança, Agnes rica, bonita, popular, tudo ao contrário dela. A mãe dizia que a amiga não prestava, invejosa e sonsa. Inveja de quê?, retrucava Camila.
O luar adentrou pela janela e pelas pálpebras fechadas de Camila, jogando luz em sua consciência, de forma tão repentina, que ela estremeceu em seu sono. Pela primeira vez, ela enxergou a verdade. Agnes sempre destruía pedaços de sua vida, discreta e dissimuladamente, escondida pelo véu da amizade. Soube, nesse momento, em seu íntimo, que fora ela quem envenenara seu gatinho, jogando a culpa em uma vizinha. Várias outras peças soltas se encaixaram. E muita coisa passou a fazer sentido.
Em seu estado semiconsciente, sonhou com a mãe, morta há anos, sentada à cadeira de balanço onde costurava todas as noites. D. Benedita manuseava algo indistinguível. Camila aproximou-se, devagar, para ver o que era. Arrepiou-se.
"Há quem inveje até a dificuldade ou pobreza alheia", dizia a mãe de Camila |
Nas mãos frágeis e delicadas de D. Benedita, a estátua se debatia, frenética, enquanto era destruída, pedaço por pedaço. “Minha filha, tem gente rica que sente inveja até do trapo que o mendigo usa. Eu sempre te avisei. Você sabe o que tem de fazer."
Do quintal, o cachorro uivou, longa e profundamente. Camila acordou.
Sentia náuseas, apavorada como uma criança que sabe existirem monstros de verdade debaixo da cama. Levantou, tremendo e suando, dores crescentes à medida em que se aproximava da estátua. Num ímpeto, jogou-a no chão e a pisoteou com violência até esfacelar. As dores cessaram.
Eu sou Camila. Essa é minha casa, esse é meu corpo, essa a minha vida. E nem Agnes nem amaldiçoados podem comigo. Eu sou Camila. Filha da minha mãe Benedita. E eu nasci para vencer.
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Semanas depois, tudo voltara à normalidade. Nada parecia ter ocorrido. As evidências sumiram sem deixar vestígios.
Assim como Agnes.
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Um dia, Agnes voltou à cidade, E chamou Camila para visitá-la.
Camila foi. E levou consigo uma caixinha para presentear aquela que, um dia, acreditara ter sido sua melhor amiga.
Agnes recebeu-a, cintilante e sedutora, como sempre. Nada falou de si, mas lembrou dos velhos tempos, da amizade de tantos anos, quis saber como estavam as coisas. Camila ficou a olhar para ela, sua melhor amiga, traidora, assassina e pérfida. A quem sempre amara. Em quem sempre confiara. Tirou a caixinha da bolsa, abriu-a e mostrou o conteúdo para Agnes.
- Você sabe o que é isso? Estou devolvendo o presente que você me deu. – E jogou sobre ela o pó da estátua incinerada.
Camila foi embora sem olhar para trás. Não lhe interessava ver Agnes entrando, imediatamente, no estado de entorpecimento e decadência do qual jamais sairia. Bastava-lhe saber que nunca mais Agnes faria magia negra para acabar com a vida dos outros. Muito menos a de uma amiga.
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Imagens
campo de energia - https://www.publicdomainpictures.net/en/view-image.php?image=131056&picture=black-magic
Comentários
a sua narrativa beira a perfeição por se tratar de um tema tão real (alguns podem pensar que são frutos de um desvio mental da personagem). ótima forma de descrever os acontecimentos, muito ótimo o momento do inicio da "ressurreição" , " Eu sou Camila. Filha da minha mãe Benedita. E eu nasci para vencer.".
não gosto muito de citações e quase nunca as uso, mas talvez por ser época de natal e invariavelmente nesta época do ano eu estar com charles dickens na cabeceira, os momentos de pesadelos (sonhos(?)) que você narra, para mim possuem, a mesma força dos fantasmas do velho avarento.
grande como sempre !
Mas acho que ficou faltando aquela parte em que as duas ex-amigas saem na porrada e a mocinha mata a vilã com a crueldade característica da segunda.
Nêmesis em estado bruto, com a griffe Zoraya Cesar.
Anônimo - bem, não foi esse o caso. Mas não é mulher um perigo. Perigo é gente sem caráter ou coração, e aí, qq gênero é perigoso. Agora, que se há de ter cuidado, isso há.
branco - agora mesmo vc me conquistou. Dickens é meu escritor preferido. Lembrar do velho Scrooge e seus fantasmas foi de uma generosidade sua sem paralelos. Nem digo mais nada.
Carla - elogio da grande dama do Lirismo. Fechou.
Márcio- hahahaha "acacianamente óbvio" foi SENSACIONAL. Só vc mesmo. Mas "Nêmesis em estado bruto, com a griffe Zoraya Cesar" vai ficar na história. Me inspirou mil coisas. To dizendo, q vc gosta desse meu lado sombrio...
Sandra - puxa, Sandra, essas noites devem ter sido animadas! Ninguém dormia, claro, né? E obrigada!
Whisner - ,,,Poe? Sério? Vc e o branco estão se superando em generosidade!
A todos, muito obrigada, de verdade, pelo carinho, leitura, generosidade.