A SANDÁLIA >> Sergio Geia
No canto da calçada ele vê a bituca de cigarro, o galho seco da sibipiruna, a garrafa de cerveja long neck, a caixinha vazia de Big Mac; no meio do jardim, um homem coberto por trapos dormindo. Passam muitos e não percebem que ali, no canto da calçada, há também uma sandália. Não percebem o andrajoso — ele pensa —, vão notar uma sandália?
Depois, metros adiante, uma imagem ainda fraca lhe aparece: é lilás; como poderia ser branca, vermelha, marrom, até rosa, ele argumenta, mas é lilás, e novas imagens vão se sobrepondo a outras.
Embora ele tenha dito uma sandália, o que ele quis dizer mesmo foi um par de sandálias, e não um pé de sandália. Foi isso que ele quis dizer. Foi isso que você entendeu? Essa sua eterna mania jurídica de explicar tudo tim-tim por tim-tim, mas insiste nisso para você entender o que dirá agora.
Está em pé um pé, encostado na borda do jardim, como se olhasse tudo do alto, general de brigada, leão da montanha. O outro pé está ao lado, esparramado, cabeça pra baixo, tipo veículo capotado, barata mexendo as perninhas. E dele, desse pé, eflui uma dor tão aguda, uma tristeza tão profunda, que quase se desmancha, como se um duelo de gladiadores houvesse lançado um contra o outro, ou uma guerra houvesse varrido tudo, bomba de hidrogênio, e só aquele pedaço de sandália lilás, só aquele general, só aquele gêmeo siamês tivesse sobrevivido.
Nem mesmo o gari todo de laranja que varre calçada ousa tocá-las, ele percebe, após o término da primeira volta em torno da praça e o retorno à sandálias. Vai varrendo tudo, depositando no latão de rodinhas as bitucas de cigarro, o galho da sibipiruna, a long neck, a caixinha do Big Mac. Depois, se empenha em arrumar em pequenos montes, com a paciência de um velho monge, as folhinhas verdes que aos milhões esvoaçam vadiamente das árvores e atapetam o caminho.
Mas, ao chegar perto das sandálias, a única sujeira que ainda enfeia a calçada, o gari para, olha de lado, descansa o queixo no cabo da vassoura, parece até pensar algo assim — recolho ou não recolho? E como isso veio parar aqui? —, e, depois de pensar mais um pouco, de dar aquela coçadinha básica na cabeça, ele decide com a autoridade que detém sobre os lixos urbanos, que aquele par de sandálias lilás não, ele não tem lugar em seu latão de rodinhas.
P.S.: Não poderia deixar de agradecer a todos os amigos e queridos que no último dia 28 prestigiaram o lançamento do meu livro “folha vadia”. Mais uma vez vocês foram show, me colocaram no colo, me afagaram, iluminaram a noite desta folha que voa ao sabor do vento.
Comentários
Agora, vc está nos devendo a história por trás delas.