RESOLUÇÃO >> Carla Dias >>


Para breve, ele quer o diferente. Não importa que o sofá continuará o mesmo, as ruas manterão seus nomes e os provocadores codinomes oferecidos pela ironia popular. Ele quer conhecer um e outro diferentes.

A questão é que não suporta ter mais do mesmo. A diversidade do mesmo. A pluralidade do mesmo. Um ciclo do mesmo fragmentado e seus fragmentos travestidos de novidades. Ser um consumidor e provocador do mesmo. Um destaque na hierarquia do mesmo.

Pode parecer filosófico desfiar o mesmo como se ele fosse comportamento, mas não para ele, quem o sente domar seu destino, levando-o pelos caminhos indicados, às rebeldias redigidas pelo resultado inalterado.

Cansou-se dos manuais, dos itinerários, da nomenclatura da etiqueta.

Tentou as palestras motivacionais e se entediou mais do que quando encarou dois episódios e meio de uma maratona programada de série sugerida pelo aplicativo. De acordo com o de acordo do resumo de seu consumo, aquela série o surpreenderia como nenhuma outra o fizera. Prometia, a sinopse, que ele não seria o mesmo depois de assisti-la. Nisso ele tem de concordar... não é o mesmo, mas se sente melhorado, depois de desistir do que era dito apropriado para ele, no segundo tempo do terceiro episódio.

Era o início da ruína do mesmo de sempre.

Percebeu, então, como sentia medo de desistir. Compreendeu, em tom de susto, que desistir parecia tão necessário quanto realizar. 

Enquanto o mesmo lhe acontecia – e ele trafegava por esse sem-fim de desejos polidos, comportamento comportado, insensatez comedida, das que servem apenas aos momentos de humor casual, durante jantares enfadonhos –, como se não houvesse jeito de se livrar daquele amontoado de mesmo, pegou-se distraído por um devaneio:

Se não o mesmo, qual diferente?

Há perguntas que transformam a identidade das pessoas. Lembra-se daquela mulher que namorou, há quatro empregos mesmos, que o enlouqueceu com a sua mania de perguntar: por quê? Para quê? Até quando?

Não se deu conta, mas foi ali que começou a se incomodar. Não era a rotina, que acredita ser fundamental para o desenrolar de projetos, inclusive dos afetivos, que o levou a sentir verdadeiro terror pelo mesmo. Foi se perceber sendo reverenciado na repetição do que deveria ser inovador. Foi se perceber o mesmo, quando o mais interessante e importante era ultrapassar. Foi quando atentou para as frases feitas que enfeitavam seus diálogos longos e pautados em tudo o que ele se dedicou a conhecer profundamente.

Que profundidade é essa que desagua na explicação e não mergulha no questionamento?

Não se trata de descartar o que vem lhe servindo na construção da sua história, na busca das suas conquistas. Ao se encarar feito servo do mesmo, compreende a facilidade de se cair nessa armadilha. O mesmo é conhecido. O mesmo é confiável, inclusive na sua brutalidade. O mesmo é passível de compreensão, ainda que tortuoso ou contestável. 

Em determinadas áreas, o mesmo se esbalda, feito senhor dos desfechos. 

Sentado no sofá, aquele que será o mesmo, quando ele se tornar diferente. As cortinas impedem o sol de entrar, porque as crianças gostam de assistir televisão no escuro. As quatro esparramadas no tapete, cena que ele vem assistindo há décadas. A esposa aproveitando o momento para se desligar de tudo, de todos. O olhar perdido... onde?

Talvez comece pelas cortinas. Descortinar janelas lhe parece ousadia de sua parte. Deixar o sol entrar, invadir cômodos, mudar a iluminação dos corredores, abreviar a melancolia provocada pelo silêncio de quando todos vão se deitar e ele, acostumado à vida noturna, revirará possibilidades, analisará comportamentos, reverberará opiniões, debruçado na mesma escrivaninha de antes, e de antes do antes. Uma sinfonia do mesmo que permite que a beleza da vida se perca em interrupções do novo, do que pede pela descoberta. Pelo descobrir-se diariamente.

Na madrugada, escuta a esposa se levantar, ir até a cozinha e beber uma boa dose da mesma bebida. Ela não é a favor dos calmantes. Ele não se mexe, continua sentado, observando o vazio do mesmo que lhe pertence. Na sua mente, está em outro país, falando outro idioma, frequentando museus, teatros e bistrôs. As crianças o acompanham, felizes por estarem na companhia dele, em outro país, falando outro idioma, frequentando museus, teatros, bistrôs e tapetes felpudos. Descobrindo.

Daqui a pouco ela aparecerá para mais uma dose. Depois, mais uma, ao voltar para a cozinha, antes de ter chegado ao quarto. Ele reconhece o som do taco solto do chão do corredor, de quando ela para e gira nos calcanhares, voltando para de onde veio. Três doses e ela está pronta para cair nos braços de Morfeu.  

Então, chega o silêncio que é o mesmo de todas as madrugadas. Só que, desta vez, ecoam nele as questões que desajeitam o que deveria ser o mesmo de sempre.

Por quê?

Para quê?

Até quando?

Então, que os sons que o invadem são outros, são novidades. São canções ainda não nascidas, cartas não escritas, vida ainda não interpretada ao toque da verdade sobre quem se é. A música do que virá. Tudo confortavelmente hospedado dentro dele.

Em breve, ele pretende alcançar o diferente. Cansou-se do mesmo. Irá pensar em um novo que o desperte, que não seja o mesmo novo de sempre.


Imagem: Harmony © Remedios Varo

carladias.com


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Carla, sob os questionamentos do protagonista, sob a inconformidade com o mesmo, no fundo disso tudo está um conto assustador. Você tem essa capacidade de descortinar a superficialidade da vida de todo dia que nos passa despercebida, e os anos passam, e a vida passa, e seus personagens, sem nunca nos dizerem isso diretamente, enfiam, sutil, mas dolorosamente, uma agulha debaixo da pele, como a dizerem: 'despertem, despertem, antes que seja tarde, muito tarde"
Albir disse…
Assustadora a inafastabilidade do mesmo e o mesmo discurso de mudança.
Carla Dias disse…
Zoraya, é que inquieta por demais da conta a observação sem reflexão e, quando possível, ação. Viver não é aprender? Se não for assim, será raso, das esperas, das esperanças falidas, nascidas para a morte na secura da contemplação insípida. Sim, “despertem, despertem, antes que seja tarde, muito tarde”. Repito sempre pra mim: desperte, desperte antes que seja tarde, muito tarde... tarde que não oferece mais possibilidade de mudança.

Albir, é que mudança não nasceu para ser discurso, não? Ao menos, é no que acredito. Não é fácil de se lidar com elas, de fazê-las acontecer, mas acontece de ser necessário.

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