LUA DE SANGUE >>> Nádia Coldebella

Era 26 de setembro de 1950 quando a quarta lua de sangue anunciou-se, vermelha, no céu noturno. Talvez por se tratar de um fenômeno astronômico raro e de beleza incomum, durante os muitos dias que o antecederam, só se ouvia na vizinhança os rumores de que aquele era um acontecimento profético, que prenunciava terríveis eventos vindouros. Eleonora não era cética nem descrente, mas perguntava-se que acontecimentos poderiam ser mais terríveis do que as duas guerras que haviam incendiado o mundo ainda ontem.

Antes de dormir naquela noite, foi, apreensiva, ver sua pequena Yumi, seu tesouro, sua benção. Sentiu a sua respiraçãozinha calma e tranquila, admirou seu ar sereno e angelical, colocou a mãozinha dela entre as suas. Ela estava ali, molinha, dormindo, sã, confortável e preciosa como a pérola mais rara guardada com todo o cuidado nas profundezas do mar azul. Mesmo assim, ideias sem nexo lhe invadiam a cabeça, mas ela imaginava que vez ou outra as mães se permitem pensar na perda de um filho para logo em seguida sentir em seu peito uma dor inexprimível. Convenceu-se de que o clima de expectativa mística dos últimos dias eram responsáveis por este estado de desânimo e medo generalizado que a abatia. Sentada junto a cama, beijou sua amada criança, abraçou-a terna e amorosamente, deixando lágrimas grossas e quentes rolarem pelo seu rosto. Aquilo tudo não tinha sentido e ela voltou ao quarto, para junto do marido, quando seu corpo todo pulsava, querendo permanecer ao lado da filha.

O esposo estava lendo alguma coisa no jornal e às vezes gargalhava. Ele não tinha esses medos que a afligiam - as vezes algumas preocupações e com certeza estas eram fenômeno tão raro quanto aquela lua. A verdade é que Miguel poderia ser linear e superficial e, nestas horas, ela poderia descrever diligentemente as trufas suiças importadas que a irmã lhe trouxera e ao provar, ele lhe diria que não via graça naquele “bombom com um licorzinho dentro”. Em alguns momentos, ele poderia apenas olhá-la e adivinhar seus pensamentos mais secretos, deixando-a raivosa e confusa com o fato de que nem ela mesma conseguia ser tão precisa com suas reações diante da vida. Nessas horas, Eleonora sabia que ali estava um homem profundo, sensível e sábio, que não tinha a menor noção da própria existência. Na maioria das vezes, no entanto, o marido assemelhava-se mais a um golden retriever adolescente, desengonçado e brincalhão. Neste momento, ali estava o cachorro atrapalhado, rindo de uma piada do jornal. Uma forte onda de amor a invadiu e ela conteve-se para não chorar novamente. O coração ardia e diante de tanta intensidade, ela resolveu tomar um banho e ir dormir.

A madrugada foi tumultuada por chuva e pesadelos, mas a manhã trouxe consigo uma luz pálida e um frescor inigualável. Eleonora levantou-se e pode admirar o sol que entrava fraco pela janela de vidro da casa, atravessando o filtro dos sonhos ali pendurado e jogando pequenas e encantadoras sombras sobre o chão de madeira. A brisa suave balançava os sinos dos ventos que ela e a pequena Yumi haviam feito com as conchinhas encontradas na praia. Elas agora batiam umas nas outras formando um ritmo singelo.

Eleonora saiu da casa e pisou na areia branca, ainda de camisola e pés descalços. O cheiro do mar invadiu-a e o barulho das ondas era um bálsamo para as densas emoções que sentira tão profundamente na noite anterior. Girou seu corpo para admirar o paraíso que a envolvia e viu como era abençoada por morar ali, tão próxima à praia e ao pequeno bosque que desde sempre pertencera à família. Ele, tão pequenino, era um personagem de sua existência. Tinha sido, durante toda a infância, o palco das brincadeiras entre ela e sua querida irmã. Era seu amante e seu amigo, seu castelo, seu reino encantado, seu mundo. Outra onda de amor a invadiu e ela começou a ficar cansada de tanta intensidade. Com a onda de amor, veio também o pensamento de que tudo o que fosse precioso talvez fosse passageiro.

Uma brisa movimentou seus cabelos, dizendo para ela olhar melhor o bosque. Ele estava diferente naquela manhã. Tímidos raios de sol atravessavam os galhos das árvores e conferiam ao cenário um clima fantástico. O chão úmido estava com uma cor avermelhada intensa; as árvores estavam floridas e as gotas de orvalho refletiam, como joias, a luz do sol. Imersa naquela visão, ela desejou buscar as amoras silvestres para o café da manhã, mas logo a voz da pequena Yume, vinda do quarto, a trouxe de volta a realidade. O marido também já havia levantado e agora fazia o café. A menininha entrou na cozinha, com seus cabelinhos loiros jogados sobre os ombros, uma escova na mão, pedindo para a mãe fazer duas trancinhas. Tinha colocado um vestidinho rosa, do lado avesso, que a mãe logo ajeitou, e andava descalça, fazendo barulhos, dando pulinhos e batendo palmas. Agarrou-se na perna do pai e pediu comida. Ele pegou a pequenina no colo e lhe estendeu uma generosa fatia de queijo, que ela comeu feliz. A tudo a mãe observava e alegrava-se, grata pela vida que tinha.

Depois do café da manhã, enquanto o esposo lia, ela e a filha foram andar pela praia, para recolher conchinhas. A criança levou consigo sua cestinha de “coletar tesouros” e saiu correndo porta afora, com a mãe atrás de si. Caminharam pela praia, junto a água e Eleonora podia observar a marca dos seus pezinhos na areia molhada, logo apagadas pelas ondas. Às vezes a pequenina criança corria e provocava a mãe, para que esta a perseguisse e a agarrasse num abraço. Depois de muitas conchinhas, as duas planejaram fazer mais sinos dos ventos naquela tarde, para dar de presente a tia, que passaria por ali. Retornaram em direção a casa e logo a pequena parou, hipnotizada pelo bosque. A mãe observava-a, encantada.

- Mamãe, posso buscar amoras?

- Agora, meu amor? O bosque está todo molhado.

- Olha mamãe, como está bonito! Deixa eu ir buscar?

A aflição sentida na noite anterior voltou, mas a mãe colocou-a de lado. Conhecia aquele pequeno bosque com a palma da mão, sabia de cada árvore, cada pedra, cada canto. A pequena já havia ido várias vezes com ela e já havia entrado outras tantas sem ela. Mas naquela manhã era diferente, o bosque tinha aquele aspecto soturno e sobrenatural. Mesmo assim concordou com a filha.

- Está bem, Yume. Mas quero que você pegue as amoras ali da entrada. Vou com você e fico cuidando da cerca.

A criança, toda feliz, correu descalça pelo caminho entre às árvores, o vestidinho rosa balançando com o brisa, os cabelos trançados batendo nos ombros. A mãe aflita ficou observando, observando, o alarme dentro de si ecoando cada vez mais alto. Mas forçava-se a ficar ali, a não correr atrás da criança e colocá-la de volta em seu útero. Viu a pequena entrando na matinha e a luz tênue deixou sua imagem distorcida, mas ainda podia vê-la e ouvi-la cantarolando e isso durou talvez cinco, dez minutos. Então, o silêncio. E a mãe impaciente pôs-se a chamar:

ARTE: NÁDIA COLDEBELLA


- Yume! Yume! Filhinha! Amorzinho! Yume!

O pai, atraído pelos chamamentos veio até a cerca e olhou em direção ao bosque. Olhou esposa impaciente e acalmou-a:

- Vou até lá. Já volto.

Ela queria dizer para ele ficar, que estava com medo, mas a sua criança amada estava lá e de repente aquele bosque, antes amigo, era um estranho. Enquanto pensava, o esposo dirigiu-se para as árvores e ela não o impediu. Sua imagem também ficou distorcida pela luz pálida e ela ainda o ouviu chamando pela pequena, mas depois de um tempo, tudo silenciou, como antes.

Eleonora ficou ali, na cerca, aguardando em desespero mudo, até sentir o sol arder sua pele. Então entrou no bosque. Procurou em cada canto, em cada parte, atrás de cada árvore, perto de cada pedra. Chamou pelo marido e pela filha até sua garganta doer, até sua voz escassear. Desolada, deitou-se no chão cheio de folhas e perdeu-se, sabe-se lá por quanto tempo, entre os cheiros de chuva e terra. Quando a irmã chegou e não viu a família na casa, achou que a encontraria lá, mas só encontrou Eleonara misturada ao solo. Nos dias que se seguiram, buscas foram feitas e refeitas no bosque, no mar e arredores; a história e fotos dos desaparecidos foi divulgada na mídia escrita e falada, mas não havia nada, nem um sinal, nem um vestígio. Numa tarde, pai e filha foram dados como mortos e Eleonora, tomada pelo desespero e sem ter corpos para velar, jogou-se nos braços da irmã e chorou até adormecer.

No começo, ela achou que ia enlouquecer. Era uma dor surda, aguda, urgente. Apesar da insistência da irmã, ela ficou na casa e todos os dias caminhava até a cerca, na esperança de ver sua família amada retornar. Com o tempo, a dor tornou-se um espinho em seu peito, que a feria toda a vez que via o quarto intocado da criança e as roupas do marido no guarda-roupa. E assim os anos passaram e uma nova rotina de sobrevivência se estabeleceu. O ápice do seu dia era esperar junto a cerca e lá ela ficava, toda manhã, dia após dia, até o sol queimar sua pele.

Eleonora já era idosa em 28 de setembro de dois mil e quinze, quando nova lua de sangue passou pelo céu. Acordou cedo na manhã seguinte. De camisola e descalça dirigiu-se à cerca. A luz tímida estava lá, como há 66 anos. Então, primeiro ela escutou as vozes e depois viu pai e filha, intocados, saírem alegremente dentre as árvores, com a cesta cheia de amoras. Eles a olharam, mas não reconheceram a velha parada junto a cerca.

Comentários

Carla Dias disse…
Que agonia, Nadia!
Uma daquelas viagens que sempre nos inquieta fazer, porque nos colocamos ali, naquela história. Coloquei-me na sua.
Zoraya Cesar disse…
Uma história de terror, tanto mais assustadora porque verdadeira: o tempo passa. De lua vermelha em lua vermelha nos perdemos. Assustador.
Albir disse…
E assim a Nadia se junta à Zoraya para acabar com o meu sono. Vou mandar pra vocês a conta dos meus tranquilizantes.

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