ACREDITE EM SUA CARTOMANTE >> Zoraya Cesar

As cartas falam.
Mas a interpretação
cabe ao cliente.
E o cliente nem
sempre
tem razão.
As cartas dizem: onde há fumaça, lagartixa não tem cauda. Fique atento. O que é bem difícil para Feiticeiros estúpidos. As cartas riem e fazem pouco dos que não seguem seus conselhos. Fique esperto, seu tonto. As cartas alertam para o que é o melhor a fazer no dia de hoje:
tirar o mofo das pantufas 
alimentar o gato... lembre-se de alimentar o gato, feiticeiro idiota... 
amarrar sua gárgula mal-educada e insuportável 
cuide da sua vida. Se a gárgula não chamar, não abra a porta. Esconda-se. 
Ou vai se arrepender. Ayè.

O Sr. Amadan leu, releu e encheu-se de zelos. Que coisa! Obviamente Mme. Embwsteyr, ainda estava aborrecida, só podia ser. Mas ele já pedira desculpas, dera presentes, descontos... Que mulher mais rancorosa! Tudo porque uma vez, uma única vez!, ele entregara um sabonete de cascalho de tumba de vampiro, em vez do de pedra vulcânica. A pele de Mme. Embwsteyr não ficou avermelhada e fumegante (última moda entre as cartomantes), mas branca feito cal, grudenta como gelatina e, pior, sensível ao sol por vários dias, impedindo-a de comparecer à Convenção Anual de Cartomantes e Jogadoras de Pôquer na praia dos Tesouros Nunca Encontrados Porque Nunca Perdidos. 

As cartas não mentem, pensou, mas cartomantes zangadas sim. Ademais, a veracidade dos desígnios dependia, principalmente, do café da manhã e da cor do esmalte das unhas da cartomante no dia do jogo. O Sr. Amadan resolveu ignorar solenemente a mensagem de Mme. Embwsteyr. Estava cheio de encomendas, imagine se ia tirar o dia para ficar, os pés empantufados, de pernas para o ar. 

A Srta. Vishm'deos era mais feia
que um peixe cabeça de cobra.
Começou pela fórmula odorizadora de flatos, para a Srta. Vishm’deos, uma fada de maus bofes, mais feia que um peixe cabeça de cobra, mais detestável que as irmãs da Cinderela – que, aliás, também não era grande coisa. Tinha quase 300 anos e desesperava-se por desencalhar. Os machos da espécie apreciavam fêmeas que soltassem puns altos e cheirosos, e os da Srta. Vishm’deos eram extremamente fedorentos, uma mistura de chucrute mofado com ovo estragado. Já levara ao hospital, por intoxicação, mais de um pretendente desavisado. Sua fama era notória.

Mr. Stevenson, o gato (feiticeiro que se preze tem de ter um gato. Ou um gato que se preze tem de ter um feiticeiro. Diversos congressos mágico-filosóficos dedicavam-se, fervorosamente, ao tema). Como dizia, Mr. Stevenson, o gato, ronronava pela casa, procurando o que fazer, o que estragar ou, ao menos, o que comer. Estava quase na hora do lanche! Aposto que esse avoado não vai me alimentar. De novo!, rosnou, impaciente. Bem... Mr. Stevenson era um gato de atitude. Sempre havia coisas interessantes no laboratório. E foi atrás do Sr. Amadan, silencioso como um ninja.

(Lembre-se de alimentar o gato, feiticeiro idiota...)

A poção antiflato da Srta. Vishm’deos estava a pleno vapor. Literalmente. Do caldeirão, um borbulhante líquido amarelo pegajoso de aspecto repulsivo expelia densa névoa vermelha. Lacrimejando, e um pouco sufocado, o Sr. Amadan jogou algumas lagartixas secas na poção, sem perceber que várias já não tinham a cauda, nem que Mr. Stevenson saboreava, silenciosamente, num canto da sala, esse ingrediente absolutamente indispensável ao sucesso da fórmula. 

(Onde há fumaça, lagartixa não tem cauda. Fique atento, Feiticeiro estúpido)

Lá fora, a gárgula perseguia, desembestada, o ratinho-carteiro, que corria em volta da casa, guinchando, tentando chamar a atenção do feiticeiro e livrar-se do vigia brincalhão. Até que, enjoado, e tendo mais o que fazer, deu com a encomenda que trazia – ansiosamente aguardada pelo Sr. Amadan – na cabeçorra do monstrengo. Nem os ganidos sentidos da gárgula nem o som de vidro partido em mil pedaços irrecuperáveis abalou a concentração do feiticeiro. Que levou muitas semanas até descobrir o que ocorrera com a coleção de vidros temperados ao vapor de gêiseres que lhe custara uma pequena fortuna. 

(Lembre-se de amarrar sua gárgula mal-educada e insuportável)

Desligados todos os apetrechos sibilantes, assoviantes, pulsantes do laboratório, o Sr. Amadan ouviu esmurrarem a porta. Aquela gárgula inútil deve estar atrás da vassoura de alguma bruxinha aprendendo a voar. Ainda pensou em fingir que não estava em casa, mas a curiosidade venceu a hesitação. Lembrou-se vagamente dos conselhos da cartomante e resolveu continuar a contrariá-los. Não estava tudo dando certo até agora?

(Cuide da sua vida. Se a gárgula não chamar, não abra a porta. Esconda-se. Ou...)

À porta, sua vizinha, uma Duende Amarela de Olhos Esbugalhados, pedia, por favor, um pouco de sebo de velho reumático. O feiticeiro, pressuroso, entregou-lhe um pote cheio. Lembrava muito bem da última vez em que ela lhe pedira algo e, ao não receber, rogara a Maldição dos Vidros Quebrados, causando ao Sr. Amadan prejuízos incalculáveis. Embora um pouco decepcionada – adorava motivos para rogar pragas – a vizinha era honesta e devolveu a gentileza, prometendo levar, na manhã seguinte, testículos de burro doente cozidos ao sebo de velho reumático. O Sr. Amadan teve ímpetos de gritar. Detestava a culinária da Duende, cujos olhos remelentos e unhas enormes lhe davam engulhos. Não havia como escapar, a cortesia o obrigaria a comer um bom bocado da iguaria na frente da vizinha. Fechou a porta, desgostosíssimo de tê-la aberto em primeiro lugar. 

(...Ou vai se arrepender)

Voltou à sacrossanta tranquilidade de seu laboratório, onde tudo parecia normal. Mr. Stevenson dormia, a barriga cheia, sob os últimos raios de sol. A cor da fórmula estava um pouco diferente do habitual, mas a poção estava pronta. 

Gritos estridentes e berros esganiçados fizeram-no correr novamente para a porta, apenas para ver, consternado, a gárgula mastigando, prazerosa e voluptuosamente, a peruca da Srta. Vishm’deos, deixando à mostra sua calva cinza-mofo cheia de nódulos purulentos. Ela o olhou com ódio.

- Uma Fada de respeito como eu não pode andar com a calva aparecendo, feito uma sereia qualquer. Sua gárgula é muito inconveniente. Não espere que eu pague pela encomenda, depois desse prejuízo – resmungou, mostrando seus dentes horrendos.

...

O dia terminara. Apenas por precaução, não porque acreditasse na boa intenção de Mme. Embwsteyr, prendeu a gárgula no quintal (vai que ela assustasse o ratinho-carteiro, impedindo a entrega de sua preciosa coleção de vidros!). Lembrou-se de dar a ração de barbatanas azuis a Mr. Stevenson (que, apesar de estufado pelas caudas de lagartixas que comera, não se fez de rogado). Tirou as pantufas do armário e sentou-se para descansar. 

A essa hora, pensou, minha infalível fórmula para peidos odoríferos já garantiu um noivado para a abominável Srta. Vishm’odeos. Mme. Embwsteyr está perdendo a mão. Só acertou uma das predições, hein, Mr. Stevenson? O gato ronronou, amorosa e cinicamente, vendo pequenas bolhas verdes aparecerem na pele do Sr. Amadan. 

(Tire o mofo das pantufas...)

(Dançando e esvoaçando, pelo salão, a Srta. Vishm’deos soltou um pum na cara de seu pretendente. Que, assim como os circundantes, desmaiou, intoxicado com o famoso e nauseabundo cheiro de ovo estragado e chucrute mofado, agora misturado com o de urubu putrefato. Expulsa do baile e ainda solteira, remoía uma ira indigesta contra o pobre Sr. Amadan. E Fadas são seres vingativos...)

(As cartas riem e fazem pouco dos que não seguem seus conselhos)



















Comentários

Carmem Castro disse…
Sensacional!!! Adoro esse tema!!! Quero mais!!! Parabéns!!! Amei!!!
Unknown disse…
Muito divertida a história! Adorei! :-)
Marcio disse…
Creio que um ex-feiticeiro começará a procurar emprego em 5... 4... 3...
Carla Dias disse…
Zoraya, adorei! E tudo... todos. Que interessante, que ritmo bom tem o texto. E o tom do humor é dos bons. Parabéns e obrigada! Sempre bom ler você. Beijo.
gente, eu amei os nomes!!!!!!!!!!!!!! Zô, vc é incrível, tô rindo até agora... e ai daqueles que não leem os sinais corretamente ;)
Clarisse Pacheco disse…
Já deu para começar o fim de semana com o pé direito!!! Divertidíssima!! Beijos
Anônimo disse…
Feiticeiro que precisa de cartomante, puns fedorentos, gatos, comidas "exóticas", etc... Já estou com saudades dos defuntos! Hahaha...
E o seu Face não tem nenhum vídeo! Estou com vontade de colocar um da "figura" que acusou o Neymar de estupro lá, mas o Face vai me bloquear! Hahaha...
Zoraya Cesar disse…
Carmem - que honra te ver aqui! E melhor ainda vc ter gostado, obrigada!

Unknown Erica - hahah, vc gosta das histórias mais levezinhas, essa vc pode ler à noite!

Marcio - morri de rir com seu comentário! Tadinho do Sr. Amadan, ele não dá sorte, mas ele é bom, os outros produtos o salvam kkkk

Carla Dias - se a Princesa do Lirismo me elogia, só me resta ficar orgulhosíssima!

Aninha - hahah, eu tb me diverti com os nomes. Muito obrigada! Ainda bem q a gente tenta ler os sinais corretamente, né não?

Clarisse - que bom q gostou e se divertiu! Alegria para um autor é atingir seu objetivo. Feliz fiquei eu.

Obrigada a todos!
Albir disse…
Eu não acreditava em cartomantes, Zoraya. Até conhecer as suas.
Beijos e parabéns!

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