SEBASTIÃO, O SACRISTÃO >> Sergio Geia
O Bastião daquela cidadela tinha um metro
e meio de altura, cabelos raspados nas laterais com um tufo acinzentado no meio
— no melhor estilo milico —, a simplicidade valiosa de um camponês. Quando a
bagunça atingia níveis estratosféricos no salão paroquial, ele aparecia, mas
não dizia nada. Sua presença impunha respeito, apesar do tamanho, talvez um
pouco pelo medo que sentíamos daquele baixinho e do que ele seria capaz, tudo
num começo de andança pra muitos. Depois nos tornamos amigos.
O medo vinha mais de suas rugas.
Bastião já devia ter passado muito aperto nessa vida, pois tinha nos olhos,
escondidos atrás de lentes garrafais encaixadas numa armação antiquada, a
expressão cascuda de quem já desbravara densas matas, uma espécie de Villas
Boas suburbano. Ficávamos a imaginar, sentados nos jardins da Santa Teresinha,
como deveria ter sido a vida daquele sujeitinho de pouca fala, de olhar sério e
de raros amigos.
Lembro-me de uma vez em que os
coroinhas foram denunciados por um jornalista na rádio AM local, por estarem
destruindo a praça, quando na verdade apenas brincavam de esconde-esconde.
Bastião me encarou todo sério e sem pestanejar me surpreendeu com seu sorriso
lacônico: “Ô Nersinho! (ele tentava encontrar meu nome, mas nunca acertava; na
verdade queria dizer Serginho, mas saía Nersinho) Isso é coisa de desocupado”.
Quando ia bater o sino, do altar nós o víamos
subir a pequena escada que nascia no coro e terminava na torre. Pensávamos: “Lá
vai o Bastião repicar o sino na hora da consagração”. Subia devagar, quase
parando. De vez em quando, parava mesmo. Parava para ouvir o padre falar, tudo
muito no seu jeito tartaruga de ser, na velocidade que a vida deveria seguir,
mas não segue.
As intenções da missa eram marcadas num
papel tosco e escritas à mão. Hoje não, tudo é digitado. Mas naquele tempo, antes
da chegada da máquina de escrever, os garranchos do Bastião tomavam lugar de
honra na mesa do altar. Sinceramente? Não sei como o padre conseguia ler aquilo
tudo sem errar o nome de alguém.
Outra mania do Bastião que não me sai
da memória era pendurar uma caneta Bic atrás da orelha. Um jeito fácil e prático
de tê-la sempre à mão. Era um costume de muita gente. Hoje não. As canetas não
vivem mais atrás das orelhas.
Sebastião devia ter uns setenta quando
o conheci. Vivia mastigando sei lá o quê, parecia chiclete. Na verdade, não
tinha um de nós que não apostava na hipótese de Bastião estar comendo hóstia às
escondidas. Não as consagradas, é claro, mas aquelas que eram apenas pão em
formato de hóstia, e que ficavam no armário da sacristia aguardando o momento
da consagração. Mas haja hóstia, porque ele mastigava sem parar. Até que padre
Leite, outro brincalhão, falou um dia que Bastião mastigava a própria língua.
Pois me lembrei de Bastião outro dia e
de todas as suas manias, isso às quatro da manhã. Eis que, sonhando que tinha
nas mãos um poderoso X-Tudo lá do Toninho, quase arranquei um pedaço da língua
no melhor jeito Sebastião de ser.
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Muito boa!