O FIM DE ALGUMA COISA >> André Ferrer
Encontraram-se no lugar combinado, mas
uma delas chegou atrasada. Bete, Gracinha e Tina já estavam impacientes quando
Gabriela entrou no shopping vinte ou vinte e cinco minutos depois.
— Hoje, realmente, você conseguiu
superar a própria marca — disse Tina.
— Caramba! — fez Bete. — Mas que demora!
— Não tem celular não, garota? — disse Gracinha. — Menina, ultimamente, você só dá mancada. Nossa!
Cada vez mais, os atrasos de Gabriela
constituíam uma fonte de críticas e incômodo. Para ela, o clima já estava
comprometido. Bete, Gracinha e Tina moravam em bairros diferentes, mas sempre
chegavam ou saíam juntas. À custa dos seus “smartphones”, até pareciam gêmeas
xifópagas.
— Peço desculpas — disse Gabriela, que
não foi perdoada. Realmente, a importância que as outras dedicavam ao seu
descompasso parecia maior naquela tarde.
"Home, sweet home" (2000) - gravura de Estela Batista Costa (Conheça a autora!) |
A frustração, na
verdade, tivera início de manhã. Gabriela e a mãe discutiram por causa do
programa vespertino e o avô, que também morava na casa, envolvera-se.
Aturdida pelas
insinuações das amigas, Gabriela duvidava de que as coisas melhorassem.
Lembrar-se, ainda, dos acontecimentos daquela manhã, colocara-a num estado
ansioso e introspectivo. De repente, ela percebeu que Gracinha, Tina e Bete
estavam caladas. Ela teria, enfim, um descanso. Gabriela sempre nutria grandes
esperanças naquela etapa dos passeios que, no entanto, constituía um intervalo
enganosamente agradável. Na maioria das vezes, aqueles minutos fluídos e leves
se revelavam como uma trégua mais ou menos longa que precedia terríveis
bombardeios. Assim, as quatro se afastaram do ponto de encontro e começaram a
vagar diante das lojas.
— Olha que tudo! — Tina
gritou. No mesmo instante, arrastava Gracinha para si.
— Eu não disse? — fez
Gracinha enquanto Bete também chegava, muito eufórica, e apontava ora para o celular da amiga ora para um legítimo iPhone atrás da vitrine.
Gabriela parou. Os
braços caídos ao longo do corpo. A despeito da proximidade, sentia-se apartada.
Um ou dois passos bem abertos era a sua distância daquele festim.
— São muito parecidos — disse Bete.
Naquela manhã, Gabriela
perdera a razão quando a mãe denunciou a forma como os jovens viviam debaixo de
aparências. Na verdade, ela perdera a razão devido à escassez de argumentos e
aos palavrões que decidiu empregar. O avô, que era doente — mas ainda assim o
pai da sua mãe —, resolveu intervir.
— Gabi! — disse Tina. — Você já viu como o celular da Gracinha é idêntico ao novo iPhone?
Indecisa, Gabriela
resmungou que sim. Afinal de contas, naquela tarde, as coisas pareciam caminhar
com velocidade. Um “sim” acompanhado de um sorriso até podia frear o andamento
das coisas. Ora — pensou Gabi — se, por um lado, há esperança, de outro, existe
a impressão de um desastre anunciado. Tudo porque a mãe e o velho tinham discutido
feio algumas horas atrás.
— Pegue estes trocados, menina — tinha dito o avô. — Primeiro, ensinam a gostar de tudo o que é bom. Depois, chamam as crianças de deslumbradas... Mas que barbaridade! Tome, Gabi,
este dinheiro! Divirta-se com as amiguinhas no shopping. Fique tranquila.
O avô era diferente dos
pais e avós de Tina, Gracinha e Bete. Todos os “adultos” que Gabriela conhecia
também no bairro contavam histórias cheias de miséria e o velho Oscar
escarnecia dessas histórias porque as achava pessimistas e reveladoras de um
fraco caráter. Os avós e os pais da maioria dos seus amigos, aliás, mereciam
esta definição que, entre risos irônicos, o seu Oscar empregava: — Autopiedosos.
— Ora! — tinha dito a
mãe. — Lá vem ele com uma das suas palavras bonitas!
— Tenho origem humilde — retrucara o avô. — Mas aprendi a diferença entre falta de dinheiro e pobreza
de espírito. Por isso, minha filha, muitas das pessoas cultas e inteligentes
que cruzaram o meu caminho trataram logo de me dar atenção. Sabe por quê?
Porque eu não reclamava o tempo todo. Aliás, foram essas pessoas que me
ensinaram tantas palavras bonitas.
Durante alguns minutos,
o avô prosseguira. Ele não costumava esmorecer na presença de quem quer que
fosse. Na cancha de bocha — sempre polêmica aos domingos —, e durante os inevitáveis “papos furados” que precisava aturar na vizinhança, era ferino. Assim, ele recordou
o tempo em que gente pobre trabalhava e não ficava à espera de Deus ou do
governo. Seu Oscar tinha feito carreira na metalurgia e, apesar do passado rude
na lavoura, chegara a chefe de uma seção na indústria automobilística, onde se
aposentou. A partir dos anos 2000, tendo se tornado viúvo e a filha mãe
solteira, passou a viver naquele bairro que, segundo dizia sem medo, era o
lugar mais mesquinho do planeta.
Indignada, a mãe de
Gabriela tinha feito, então, a sua última tentativa:
— Quando a Gabi era
criança e, até bem pouco tempo atrás, as coisas iam bem, papai. Agora, tudo está
pela hora da morte! No mês passado, a compra de alimentos diminuiu por causa da
conta de luz. O senhor não lembra? Então, essa menina parece não entender.
Reclamou a semana inteira de que as amigas têm o último modelo de celular e o
dela, que foi o presente de Natal, é lento para internet. Ora, se não entende,
eu repito: garota, o dinheiro está curto até para o seu “rolezinho” no
shopping!
— Eu só lamento — dissera
o avô. — Fico bem triste por esses jovens que nasceram e cresceram numa época
tão cheia de falsas esperanças. Realmente, esteve ótimo. A fartura, no entanto,
acabou. Chega uma hora em que a fonte seca. Chega uma hora em que as tetas
murcham — concluíra o velho enquanto colocava carinhosamente o dinheiro nas
mãos de Gabriela.
Depois do lanche, as
meninas andavam a esmo novamente e, diante do cinema, estacaram.
— Olha que tudo! — disse Gracinha. —É aquela história do rapaz e da moça que se apaixonam e têm leucemia. Vamos lá?
Pela primeira vez, em
várias semanas, Gabriela tinha dinheiro para o cinema. A mãe diminuíra gradativamente
o valor e isso vinha transformando aquela fase do passeio num verdadeiro
vexame. Agora, no entanto, ela tinha o dinheiro do cinema, do ônibus e ainda
sobrava — na verdade, sobrava mais da metade da quantia que ela costumava ter.
— O filme deve ser
legal — disse Tina desanimada.
— Sim! Vamos lá — disse
Gracinha, que já tratava de arrastar Bete na direção da bilheteria. —Muito bem, Gabi, até segunda-feira. Meninas! Tina?! O que foi?
— Gracinha — disse Bete, livrando-se das mãos da amiga. — Escute. Infelizmente, eu só tenho o dinheiro da condução.
— Gracinha — disse Bete, livrando-se das mãos da amiga. — Escute. Infelizmente, eu só tenho o dinheiro da condução.
— Eu também. Uma pena — disse Tina diante de Gracinha, que ainda parecia incrédula. — Sim, amiga, pode
acreditar. E você sabe o que aconteceu lá em casa?! Pois bem. A mãe e o pai,
que andam muito nervosos, quase me fizeram escolher entre o shopping e o passeio
do colégio, mês que vem, na última semana de aula.
Desoladas, as três
amigas caíram no mais constrangedor dos silêncios. A quarta, Gabi, acenava.
Como de costume, ela se
despedia do grupo naquela etapa do passeio. À distância, desejou então que Gracinha,
Tina e Bete, apesar do infortúnio, se divertissem. Tinha descoberto algo
surpreendente: as “economias” daquela tarde no shopping era o que bastava para
o tal passeio do colégio.
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