DE MÃOS DADAS COM BATMAN [Ana González]

Ele ia seguro de si. Uma de suas mãos segurava a da mãe. A outra mão colocada na imagem de um morcego, na altura do peito, talvez se certificasse de que ela estava lá porque era parte importante de sua vestimenta especial. Ela parecia estar com pressa e ele, em seus quatro ou cinco anos, a seguia com dificuldade.

Talvez sua mãezinha estivesse com o pensamento em diferentes questões que as dele, que vivia um momento quase solene. Era a primeira vez que colocava a roupa. Seus olhos não enxergavam a realidade, a rua e os passantes apressados, as vitrines cheias de bolas de Natal e enfeites coloridos. Nem percebia os buracos pela calçada e as buzinadas desnecessárias do congestionamento. Nem a poluição ou corrupção se misturando à luz do sol e às nuvens macias. Talvez vissem apenas o que só ele poderia descrever. Ninguém mais. Seria impossível perceber o quê. Naquele momento, ele incorporava seu herói. Batman, sem a máscara. Era o espírito que interessava. E talvez ele não tivesse os detalhes da Gotham City, o ambiente soturno das aventuras, os motivos de seu herói. Não precisava.

A roupa de um super herói o transformara em um deles. Como criança podia se fazer de herói quantas vezes quisesse, da forma que quisesse. Usufruía do ídolo a ser imitado, um modelo com que sua imaginação sonhava. Exercício de plágio inocente. A espontaneidade dessa fase não questionaria verossimilhança ou outros critérios tão presentes na vida adulta.

Depois da infância, aos poucos, vamos perdendo essa capacidade. Ou necessidade. Para que serve um herói? Também a adolescência hoje em dia não comporta mais heróis. Tal panteão foi esvaziado. Não existe mais espaço para grandes gestos e ações generosas. José Junior, coordenador da AfroReggae, disse: “Os heróis de Cazuza morreram de overdose, os meus morreram de tiro”. Tal constatação põe em evidência o contexto em que vivemos.

O pensamento mágico que possibilita o trânsito para o terreno dos deuses e heróis se perdeu, se diluiu. Por onde andam nossos heróis? Às vezes, resistem no cinema. Quem sabe andam encurralados em recantos de um mundo duro que insiste em expulsá-los. Maltratados, alguns até claudicam, outros manquitolam. Porém, só eles podem nos salvar da maldade e da dor. Sua proximidade pode nos resgatar para o sonho e a imaginação de um mundo melhor. Junto deles, somos poderosos. Eles carregam a imagem que suporta nossas faltas e nos ajudam a tolerar a realidade. Para eles transferimos nossas aspirações, mesmo que, muitas vezes, na idade adulta, eles permaneçam escondidos, em alguma dobra de nosso ser.

Nenhuma dessas observações cabe no pensamento de nosso pequeno herói. E talvez, em um momento futuro, no mundo adulto, já sem esse tipo de anseio, seu super-herói terá desaparecido de sua mente ou coração. Não conseguirá mantê-lo como anelo de perfeição a ser mais desejada do que alcançada.

Volto meu olhar para o pequeno vestido a caráter. E ele sequestra minha imaginação. Sem tempo a perder, trazida da memória de minha infância longínqua, reencontro a Mulher Maravilha, que brota desse baú trazendo-me as botas de cano longo, o cinturão que marca o corpo, com as estrelas na tiara da testa e na saia curta. O cabelo curto se transforma em largo ondulado escuro.

Vou libertar essa criança - esse meu Batman preferido - de sua mãezinha para carregá-lo a um passeio. De mãos dadas, saímos voando entre as nuvens e nos perdemos em uma amplidão transparente. Rimos entre as visões das montanhas tão distantes e das estrelas tão mais próximas. Voltamos sem temor ao planeta em que habitamos preparados para a aventura. Temos o poder. Ele tem habilidades especiais e o gesto que salva. Eu alivio com o pó de perlimpimpim os esquecidos, os oprimidos, os doentes de toda a miséria humana. Somos uma dupla imbatível.

Não duvide desse intervalo dentro da realidade. É só uma fresta na vida, outra perspectiva. Coisa rápida, mas indispensável. Curativa. Vestir-se de herói é promessa de mudança. Traz a esperança. Aproveite a ideia. Além do mais, é Natal - e a magia do amor pode até ser encontrada no ar.

Comentários

Anônimo disse…
Olá Ana, adorei seu texto, uma viagem ao mundo da fantasia mas também ao mundo onde prevalecem o desejo de fazer o bem e a coisa certa. Senti como uma janela de ar puro no meio da maré de notícias que nos inundam pela mídia. Que você receba todo o reconhecimento que merece a sua criatividade. Abraços, Feliz Natal.
Odila Weigand
Ana González disse…
Que contentamento receber seu comentário ! Bom demais poder compartilhar idéias e experiências com vc . obrigada pela leitura e presença.
Zoraya disse…
Que texto mais bonito, Ana! Obrigada.

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