O SUBVERSIVO DO KANGOO >> André Ferrer


Bruno!

− Suzane!

− É... – disse comigo mesmo. − Onde estará o Mizaelzinho?

Fila de cinema. Cercado de adultos notavelmente mais interessados no filme do que os pequenos a tiracolo. Alice. Branca de Neve e o Caçador. João e Maria. O apelo infantil, nos dias de hoje, atrai e convulsiona a mais insuportável espécie de homens e mulheres: pais e mães “adultescentes”. Enfim, o bom senso aconselha-me a nunca mais fazer aquilo.

− Pa-pa-i-quer-pi-po-ca.

Pronto: o raio da minha imaginação logo abriu os trabalhos. Começou a pintar um bestiário para Hieronymus Bosch nenhum botar defeito. Bruno, 10, Suzane, 14, e Mizael, 3 – este, naturalmente, ficara em casa com a babá – nasceram rápido demais. Ninguém esperou que o papai e a mamãe amadurecessem. Malvados.

Enquanto a fila se arrastava, questionei o meu suspeito interesse naquele conto de fadas transformado em arremedo de Tarantino. Django tinha sido ótimo uma semana antes. Eu precisava assistir àquela história cercado daquela gente? O fanfarrão agarrou os ingressos. Ele vestia uma indiscreta camiseta vermelha. Na frente, o rosto batido de Che Guevara. Nas costas, os dizeres: “Yoane, ¿por qué han traicionado a su gente?”

Como um dos demônios do pintor holandês, o sujeito levantou os braços e gritou:

− Partiu blockbuster!

Che Guevara chorou. A fina flor dos diabretes o escoltava para um dos enormes buracos abertos no chão onde havia uma placa: “Joint-ventures e bom senso nunca são demais”.

Ma-mã-e-quer-coca-zero.

Até hoje, estouro de rir quando penso que o sistema deve ser um monstro cheio de ex-rebeldes enfiados nas entranhas.

Ma-mã-e-ven-de-Ma-ry-Kay.

Sim, é o caso dos ‘adultescentes’. Quando há um delay entre as idades mental e cronológica, a rebeldia ganha comicidade.

− Ma-mã-e-va-i-sa-ir-da-di-e-ta-por-que-é-sá-ba-do.

Tubinho rosa-shocking. Correntinha dourada na bolsa “Luli Vison”. Ligeiros golpes de vista sobre o referido acessório produziam a seguinte ilusão de ótica: lu-vuitton-L-V-louis-vi. Um insight e, pronto, as palavras “Galeria Pajé” chegavam para dissipar o embuste.

Outra vez, o raio da minha imaginação recriou o desembarque dos diabretes no estacionamento do shopping. No interior do Kangoo, as crianças preveniam os adultos a respeito de guloseimas e birra. Imprescindível comportarem-se bem.

− O senhor?!

Indeciso, perguntei à bilheteira se Django ainda estava em cartaz em alguma outra sala.

− Não – disse a mulher incrédula.

Na minha nuca, a outra família respirava como um dobermann hidrofóbico. Senti-me, assim, pressionado a entrar e, na próxima hora, descobriria se um casal de irmãos exterminava bruxas tão bem quanto a incrível Sigourney Weaver liquidava organismos extraterrestres. Entrei. Obriguei-me a pensar no silêncio da nave Nostromo. E havia um gato juntinho daquelas pernas estonteantes. Imagens assim afastam maus pensamentos. A câmara criogênica, os coxões da oficial Ripley, a tanguinha e a blusinha colada nos pequeninos peitos.

− Papai!

Logo eu pensei: − Que mancada! Perto demais.

− Mamãe! Papai! Fiquem quietinhos. O filme já começou. Nós também queremos assistir.

Hieronymus Bosch pintou o inferno para sobreviver. Eu fechei os olhos. Uma vez mais, do fundo do meu coração, desejei ser o gato entre as pernas da matadora de aliens.

Comentários

albir disse…
Afasta maus pensamantos, André? E o que gera bons pensamentos? Ou maus? Estou ficando confuso, deve ser a câmara criogênica.

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