PIOR CEGO É O QUE NÃO QUER VER >> Zoraya Cesar

Dizem que todo o cuidado é pouco; que o seguro morreu de velho, mas o desconfiado ainda vive; há que se dormir com um olho aberto, outro fechado; colocar um pé atrás, outro na frente; fazer o bem, mas olhar a quem. 
Ditados antigos, que, passando de geração a geração, tentam nos alertar que nada é o que parece, quem vê cara não vê coração e que tudo o que é sólido desmancha no ar (tá bom, essa citação é de Marx, mas cabe perfeitamente ao caso, não pude resistir).
Passo, então, a contar a história de Wanda, para mostrar que nossas Avós tinham razão: um olho no padre, outro na Missa.
Inteligente, meiga, honesta, generosa, Wanda era também uma boa pessoa. Claro que tinha seus defeitos, eu não disse que ela era perfeita. Vejam, por exemplo: não sendo exatamente ingênua, costumava tirar os outros por si, achando que todos eram corretos como ela, esquecendo que cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
Vivia com o Marcos, e para ela, não havia marido melhor. Era Marcos no céu e Deus na terra (o trocadilho não é meu, é dela). A união já durava dez anos e era mais sólida que as Muralhas da China.
A essa altura, os amigos leitores devem estar se perguntando quando virá o elemento crise dessa história tão perfeita. Agora mesmo, calma, que o apressado come cru. E a crise tem nome.
Solange já passava dos 35 anos, solteira, vivia apertada em seu salário de professora, vestia-se mal (vejamos, que tal misturar roupa de ginástica com salto alto?). E era feia. O olhar mais caridoso não encontraria outro adjetivo. Tinha, ao menos, charme? Não. Solange era tão opaca que poderia ficar horas num lugar sem que sua presença fosse notada.
Por obra e graça do impressionante trabalho das redes sociais, as duas amigas de infância se reencontraram, depois de muitos anos de afastamento. Embalada pelas lembranças felizes, Wanda recebeu a antiga amiga em sua vida, de coração aberto e olhos fechados.  Viraram um grude só, os finais de semana Solange passava inteiros na casa da amiga. Ela era uma coitada, no entender de Wanda, precisava de apoio. Marcos discordava. Dizia que Solange até podia ser coitada, mas era uma chata.
Wanda achava muito natural sair com o marido levando a amiga a tiracolo. Que mal havia nisso? Sua Avó balançaria a cabeça e diria: Fia-te na Virgem e não corras, para veres o tombo que levas (é um ditado português, ora pois).
Pois sim.
Uma noite, Wanda espera, espera, e nada de Marcos chegar. O celular dele só caía na caixa postal. Quando já estava prestes a telefonar para todo mundo, em pânico, o telefone dela toca: é o Marcos.
 - Meu amor, onde você está, o que aconteceu?
Mas não é Marcos quem responde. É Solange, com a voz baixa e lenta de sempre.
- Wanda, minha amiga, o Marcos veio morar comigo. Estamos apaixonados e nem pense em procurar por ele, que agora a conversa é outra.  E deixa eu te dizer, essa casa do Recreio é grande demais só pra você, então vamos ficar aí. Você pode procurar outro canto. Lamento muito, mas quem vai ao ar perde o lugar.
E desligou.
Wanda não conseguiu sequer se mexer, teve medo de morrer ali mesmo, sozinha. Em sua cabeça, nenhum pensamento coerente, apenas esquetes dos momentos que os três passaram juntos e nos quais ela ainda não enxergava nada que pudesse causar suspeitas. O marido e a amiga mal se falavam ou olhavam!, era sempre Wanda quem animava as conversas. A cabeça girava, tonta.
E ouviu muito claramente a voz do marido, como se ele estivesse ali ao seu lado, dizendo o quanto Solange era desagradável, sempre com aquela voz enjoada. Pior! Lembrou da vez em que ele afirmou que era até uma crueldade Wanda, tão bonita, aparecer ao lado de alguém que mais parecia o Godzilla. A comparação foi tão esdrúxula que ela riu e disse que a pobre Solange era boa gente, boa amiga.
Wanda desabou. Não conseguiu nem chorar de tão entorpecida. Quando a exaustão a venceu e ela finalmente dormiu, sonhou. Sonhou com todos os sinais que deixou de perceber – sim, porque os sinais estão sempre lá, acredite, não os vê quem não quer. E também com a Avó lhe dizendo deu chance ao azar, deu chance ao azar...
Wanda, Marcos, Solange. Personagens de uma história que se repete todos os dias em algum lugar do mundo. A desapercebida, o fraco, a víbora. Já aconteceu perto de você?

Comentários

aretuza disse…
Já dizia a minha avó que a divisória entre a bobice e a burrice é uma linha muito tênue... mulher não pode ser boba, ingênua porque sempre acaba sendo burra!
Verdade...
bjs
W L disse…
Coração do outro é território que ninguém pisa, como diz a sabedoria popular... Vai saber.

Ótimo e envolvente.
Muito bom!
No território em que o ser humano habita tudo pode acontecer...
Beijos
Zoraya disse…
Aretuza, lembre-se bem do que sua Avó dizia, voce teve sorte em ter uma táo sábia. A ingenuidade, quando mal aplicada, é uma praga!

Wanderley, puxa vida, era exatamente o que a minha Avó dizia! Puxa!

Marisa, pois é, somos mesmo uma incógnita. Vá saber o que aconteceu entre o Marcos e a Solange. O que podemos fazer é estar atento aos sinais. Beijos mil para você também
albir disse…
Zoraya,
você ajuda a compreender o cotidiano, transformando em arte o drama e a mesmice nossa de cada dia. Beijo.
Luri Barbosa disse…
Eu diria que a confiança é o problema. Confiar demais nas pessoas é problemático, mas auto-confiança em exagero também é problema. Talvez a Wanda tivesse muita confiança em sua bondade...
Zoraya disse…
Albir, você é um estímulo! Muito obrigada. Eu queria mesmo fazer mais leve a vida das pessoas.

Luri, você acertou. A Wanda pecou pelo excesso de autoconfiança na própria retidão. Não podemos nos esquecer que, quem tira os outros por si, na verdade é um Narciso disfarçado. Valeu o comentário!
Alexandre Durão disse…
Zoraya.
Vocês, mulheres, são melhores que nós em quase tudo. Mas, nesta questão de trair a amizade pela paixão, com mil perdões, vocês são muito piores.
Seu texto me presta dois serviços: um, é agradabilíssima companhia; dois, me faz conhecer melhor o misterioso pensamento feminino.
Beijão.
Anônimo disse…
Ela deveria aprender que nem todos são bons como ela é. As pessoas gostam de mostrar o que elas querem mostrar, mas raramente o que realmente são. Ocorreu um fato desse comigo. Eu fui a Wanda da vez. Mas sempre confiei desconfiando. E agora aprendi que não ajuda mais ser um olho aberto e o outro fechado, mas sim os dois olhos abertos para enxergar melhor!

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