DÉGRADÉ >> Carla Dias >>

Minha máscara: dégradé.

Não reconhece? Insisto, porque debaixo dela eu moro, e se aspira conhecer a mim, dê algum sinal, senão me escondo, fico submersa, debaixo das plumas e mágoas, neste aconchego equivocado.

Minhas mãos... Saiba que elas já tatearam a intensidade. Plantaram, colheram, arrebanharam: silêncios e desenhos de sombras. Tocaram o vento. E também acenaram às fatalidades.

Veja que não sou esboço do que sonhei ser um dia. Na infância dos meus sonhos eu sucumbiria às descobertas, quando adulta, e não haveria limites para a sapiência e a ciência sobre os sentimentos que desejasse conhecer. Não haveria álibi que me livrasse da culpa, ré que seria por desejar da vida cada farpa, cada afago. E minha mãe me ensinou o amor sem caras e bocas, sem bolsos, sem raça. Minha mãe me ensinou o amor indiferente às distrações que pudessem tirar dele, na essência do seu significado ainda tão enigmático, a honestidade. E ao amor honesto delega-se o incondicional. Sendo incondicional com o outro, espera-se o mesmo. Porém, quase sempre, espera-se em vão.

Sentei-me à margem da vida, olhos cravados no avesso do espelho, abocanhando a antítese dos fatos, vislumbrando a ilusão das conquistas. Esperei. Incondicionalmente. Minha máscara é cortesia da humanidade esfarrapada. Fazer? Observar intolerâncias?

Prefiro cortejar mudanças.

Mas, contenha-se...

Antes de me aceitar, abstraia a tagarelice da sua consciência. Que não seja pelo equívoco de se convencer afetuoso, enquanto sente é piedade. A piedade eu dispenso, porque ela me dispersa. Antes de me aceitar, se possível for, conheça-me às avessas, porque fui jogada ao mundo para contracenar com o inadaptável. Eu e mais tantos. Ainda assim, somos solitários. Somos cada um a vagar pelos próprios cômodos de casas abastecidas com vazio. Somos erros cometidos por um Deus preocupado com coisas mais importantes do que nossa sofreguidão. A sofreguidão de quem não cabe aqui ou ali, de quem foi feito à imagem e semelhança do desconcerto, e se arrasta pela vida, à sombra dos rótulos.

Quem está apto a nos julgar? Quem tem a consciência tranquila para fazê-lo sem tropeçar em próprios erros? E se busquei em outras fontes a solução para a alma, não foi por gosto, mas por vazio querendo ser preenchido. Sabe que gente sabe fazer outra gente se desesperar fácil, fácil? Basta um olhar, um esgar. Basta uma palavra amarga em meio a tantas outras benevolentes. Ferir é arte que o ser humano domina. Quando quer, ele destrói sem esperança de reconstruir, e depois faz de conta que não foi com ele. Não assina autoria do desfeito. Convive bem com o crime que não tem nome de crime, porque não mata assim, logo de cara. É mágoa para carregar pela vida.

Confesso que este agora me alucina um tanto que parece pouco, sei, mas alucina. Meus olhos se atrevem a desenquadrar a realidade, e meus pés tocam o chão como se, na verdade, ele não existisse. Falseio o passo, e se caísse? Arrebentasse de desespero? Raramente, quem não cabe se conforma. Vai pegando fórmulas milagrosas aqui e ali. Aceitar o conformismo seria o mesmo que assinar atestado de óbito para a vontade de sentir. Sentir além do que parece possível. Sentir com toda força que o ato exige quando se tem – latejante – a vida dentro da gente. E pensamos lutar pela igualdade, mas durante um tempo não nos damos conta do óbvio: não há como igualar diferenças. Sublimá-las a um mesmo cheiro e a um mesmo gosto seria assassinar a beleza que há na multiplicidade. Seria designar destino certo ao que nasceu para conquistar o seu próprio. E é assim, nesse afobamento, que vou levando o desentendimento com a simetria, com o justificável, o ‘rotulável’, o sonso. Amando e odiando o contrário de mim.

Quantos enganos não foram cometidos à custa do que não era? Inocentes dançando com condenações. Sorriso contracenando com a mágoa. Concordância violentando a vontade de assumir o gosto por outra opinião. E por que engolimos verdades? Por que deixamos para lançá-las já quando não fazem mais sentido? Ah, mas que não tenho respostas. Sou das que nasceram com as questões em pauta e no questionamento tenho levado a vida. Mas que conste em todos os autos que possam remeter à minha biografia: viver tem sido uma experiência fantástica. E se não estivesse estereotipada de fora para dentro, certamente alguns se encantariam por mim de dentro para fora, e depois a simetria de nada valeria. Eu tenho por gosto conhecer as pessoas assim, de dentro para fora. Sei bem quão fascinantes elas podem ser, mesmo que distantes do olhar do modismo que escraviza a perfeição às definições, padrões. Mas a perfeição é rebelde e, para aqueles que se atrevem a olhar adiante, oferece grandes surpresas.

O poeta falava sobre peculiaridades, o olhar vagando nos olhares dos outros. Escreveu versos sobre a ambivalência do que sentia. Considerava-se dois e até quase dois mil dele mesmo, cada um vestindo sua máscara preferida. Às vezes, acordava com desejos de amante ou humanista. Em outras, de crente ou cético. Cada segundo de sua vida, representando não um ponteiro se adiantando no caminho do tempo, mas sim uma fração do que habitava em seu coração. Soubessem prestar atenção sem e escandalizarem com a diferença, os transeuntes da biografia dele reconheceriam no poeta diferentes paisagens que formam o universo aprisionado em seu corpo. Porém, distraídos com os próprios lamentos, não notam a riqueza que no poeta habita. Nãos e permitem envolver pelas nuanças de sua alma.

Fato é que aprisionar tem sido tema dessa existência que me abarca. Porém, diferente do que dizem por aí, percebo que o contentamento não vem em comprimidos. Não está depois dos tremores e da taquicardia. Não convive com a fadiga que corrompe as vontades que me lembro de sentir desde o dia em que aprendi a reconhecê-las. E pior do que ser crupiê neste jogo, é deixar-se enganar, dar-se por vencido, disfarçando a curiosidade alheia com frases feitas sobre como o amanhã reserva um pote de melhorias no final do arco-íris. É que o amanhã pode até oferecer mais, só que esse mais não vem em potes, não está condicionado às fórmulas. O mais, que costumamos fantasias de inalcançável, mora em um vão do equilíbrio.

E aqui estou: na corda bamba, no anverso dos meus sentimentos. Vestida de lamentos e esperança de que, dia desses, amanheça às malhas da despreocupação sobre não frequentar a benquerença de quem se entende somente com o imediatismo do olhar. Porque eu sei que o que importa está sempre além, e leva tempo para se conhecer. Leva ao desgarrar dos rótulos, dos títulos, dos invólucros.

Agora, devo voltar à minha máscara. Dégradé. Repousar as angústias geradas pela espera da real compreensão de que o ser humano não é definido pelo o que lhe falta, mas sim transformado pelo o que experiencia.

Já fui e serei e tantas que não caberei em descrições. E aqui, no avesso, reconheço meus mistérios e me nego a sentenciar sentimentos ao raso. De dentro para fora... Do avesso... Eu... Dégradé.


Imagem: Strange Flower © Billy Frank Alexander (stock.xchng)



Comentários

Carla, seus textos podem ter cor? Há aquarela suficiente para tal? Seus dedos tecem com cores ainda não codificadas? Você, como sempre, surpreendente! Obrigada por esses pequenos presentes que deixam a vida mais colorida. :)
Carla Dias disse…
Marisa... Os textos têm a cor que os escrevo misturada à cor que o leitor desperta ao lê-lo. Eu que agradeço por me por ajudar a compor esse quadro. Beijo!
Lari disse…
Nossa, primeira vez que entrei nesse blogger, e logo de cara amei. Esses textos, arduos, cheios de incognitas e de sentimentos verdadeiros me fascinam.
Obrigada por publicar isso na internet para que as pessoas possam ler.
Zoraya disse…
Carla, o texto está,como sempre, maravilhoso. Mas o parágrafo que começa "antes de me aceitar" está um assombro, li, reli, e separei para ler de novo. Obrigada
albir disse…
"Já fui e serei tantas que não caberei em descrições". Texto denso que prende e liberta o leitor.
Necessária talvez te defina como escritora, Carla. Beijo.
albir disse…
"Já fui e serei tantas que não caberei em descrições". Texto denso que prende e liberta o leitor.
Necessária talvez te defina como escritora, Carla. Beijo.
Carla Dias disse…
Lari... Muito gentil de sua parte. Obrigada e volte sempre!

Zoraya... Obrigada. Nem sei o que dizer para lhe agradecer o comentário.

Albir... Necessidade me define como pessoa. Escritora eu me tornei por acidente, e duvido dessa transformação constantemente. Beijo.

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