OITENTA >> Fernanda Pinho



Lembro dela nos ensinando a desenhar. Sempre girassóis, margaridas e cravos, seus desenhos favoritos. Lembro dela costurando roupinha para nossas bonecas, na máquina a que chamava carinhosamente de Maria Chiquinha. Lembro dela nos proibindo de dormir de cabelo solto, sob o risco de sermos sufocadas durante a noite. Lembro dela fazendo sonhos para comermos com café, e da sua falta de paciência para fritá-los até o ponto. Ficava sempre um pouco cru por dentro e ela os chamava de pesadelos. Os pesadelos eram os melhores sonhos do mundo. Lembro dela fritando bife e, esses sim, sempre passavam um pouco do ponto. Ficavam deliciosamente queimadinhos. Lembro dela nos advertir que não podíamos vestir calcinha sem passar, pois podiam estar contaminadas com ovos de mosquito. E se vestíssemos - pasmem! - o mosquito poderia nascer do ovo e entrar para dentro de nós! Lembro dela nos assustando com seus causos fantasmagóricos. Por sinal, muito mais críveis que a história do mosquito na calcinha. Lembro dela nos reunir toda tarde para assistirmos Passa ou Repassa. Uns torciam para a equipe verde. Outros torciam para a equipe amarela. E ela torcia para o Celso Portiolli, seu muso. Lembro dela enfrentar a prole de atleticanos e bater o pé dizendo que bom mesmo era o "ameriquinha". Lembro de sua mania de acender o fogão e jogar o fósforo para trás. Mania da qual ela não se desfez mesmo depois de conseguir a façanha de incendiar a cozinha. Lembro da epopeia que era cada vez que ela cismava de ir para a casa de um dos filhos. Arrumava as malas e sua inseparável frasqueira. "Agora eu vou". "Não vou mais". "Ah, vou sim". "Pensando bem, desisti". No fim das contas, ela sempre ia e ao chegar lá: "Quero voltar". Lembro da vigilância com o qual caminhávamos com o medo de pisar sem querer em seu pé enfermo. Lembro de quando ficou tempos de repouso depois de uma cirurgia. Fez colares de miçanga para a família toda. Alguns, gigantescos. Fazia e desfazia. Seu manto de Penélope para ajudar o tempo passar. Lembro dela tentando me ensinar a fazer ponto-cruz. Com paciência, já desconfiando da minha inabilidade. Lembro do bolso sempre cheio de balas e da mania de guardar dinheiro embaixo da lata de arroz. Lembro da insistência para que todos que entrassem em sua casa aceitassem um cafezinho. Lembro da mania de mudar os móveis de lugar e de arranjá-los sempre em disposições inusitadas.

Lembro de tudo e tenho a certeza de que ela, ainda que silenciada pelo Alzheimer, também se lembra. O olhar com o qual ela olha para mim e todos os seus não é um olhar de quem desconhece quem vê. É um olhar que ama quem vê. Ela, que não por um acaso, nasceu Maria. Com a estranha mania de ter fé na vida. Não por um acaso, foi rebatizada de Branca. A mistura de luzes de todas as cores. Não por um acaso, nasceu leonina. A nossa leoa brava e materna. Não por um acaso, nasceu baiana. Estreou na vida.

Ela, que não pode me ler, mas pode me sentir. Meu amuleto da sorte. Minha estrela guia. Minha vó Branca. Há oitenta anos lembrando a quem está ao seu lado que a vida é boa como um sonho com café.

Foto: http://www.sxc.hu/
www.blogdaferdi.blogspot.com

Comentários

Sá Luz disse…
Chocada que sua avó colocou fogo na cozinha!
Preciso dizer: a minha também passava minhas calcinhas e ai de mim se pegasse alguma direto do varal... ela dizia isso mesmo dos ovos dos mosquitos/moscas... fiquei pasma! Será que décadas atrás isso foi noticiado??
O Alzheimer pode fazer com que ela não diga que lembra, mas ela certamente lembra de cada detalhe desses 80 anos.
Dê um beijo enorme na sua avó.
Samara disse…
Dona Branca é o resumo da família Pinho, da qual sou declaradamente fã. Logo, sou fã da Dona Branca, cuja a história de vida é de emocionar e inspirar qualquer um. Ferdoca, ficou lindamente linda a homenagem.
Eu que já tô lacrimosa essa semana, me dei o direito de abrir a represa depois de ler seu texto. Uma pessoa como você só pode ser neta da sua avó. Acho que isso é tudo.
Unknown disse…
Nem preciso dizer estou em lágrimas, não é mesmo? Como leonina também e tendo uma vó leonina (até no nome), sinto-me um porção do seu texto.

Uma homenagem linda e sincera que só poderia ser escrita por ti, que tem uma sensibilidade tão aflorada que consegue (com maestria) traduzi-las em palavras.

Tenho certeza que sua vó sente todo esse sentimento lindo a cada olhar e a cada abraço.

Como sempre Ferdi, um arraso de texto.

PS: Minha mãe (nascida no sítio) e por conselhos da mibnha avó também pega no meu pé até hoje sobre as histórias das calcinhas sem passar.

PS2: As receitas da vovó sempre são as melhores né?!

PS3: Beijo na vó....
Marilza disse…
Você me emocionou com a sua crônica. Revivi minha infância ao lado da minha avó, ouvindo os seus 'causos', conselhos e sua infinita sabedoria.
Quanto a sua avó Branca, tenho certeza que em algum lugar dentro dela, em seu coração, ela a reconhece e se lembra dos sonhos com café.
Jujú disse…
Ô amiga...sacanagem das grandes me fazer chorar de soluçar. Cada palavra sua, descrevendo sua avó, me trouxe a minha, e a emoção do seu texto me fez lembrar de todas as coisas que a minha véinha fazia, sempre amada! Avó é uma coisa séria, né não? Tenho pena daqueles que não amam e curtem os seus avós!

E vc faz isso com um amor tão grande que me faz te admirar ainda mais!

Sei que se sua avó está com vcs, mesmo, às vezes, parecendo que não está. Assim como a minha, mesmo não estando, está!

POrque o amor tudo pode!

Um beijo bem grande pra Dna Branca e pra minha neta preferida dela!
albir disse…
Parabéns, Fernanda, pra vovó, pelo aniversário e pelo texto da neta.
Unknown disse…
O que seria de nós sem nossas avós e suas histórias, né, gente? A minha ficaria muito feliz em ver esses comentários de vcs. Obrigada =)
Paula disse…
Meus olhos lacrimejaram e meu coração ficou apertado de emoção...
Muito bom lembrar da Vó Branca e de tudo que ela fazia..
Hoje seu olhar nos basta e nos conforta...
Você tem o dom, irmã, colocou no papel algumas das lembranças que toda a nossa família tem, mas que certamente não conseguiríamos expressar tão bem!
Parabéns e viva a VÓ!
Bjos
Unknown disse…
Que crônica mais linda. A chorona aqui entrou em ação. A beleza do texto interagiu com o carinho que tenho pela minha avó, incrível também. E olha, perfeito o texto Ferdi, muito profundo. Sem palavras
Gustavo Guimarães disse…
Oi Fernanda!

São muito singelas as lembranças que guardamos das nossas avós. Fico triste porém, que a sua, assim como a minha estão com alzheimer. A minha infelizmente descansou em um sábado de 2003, no dia de uma viagem que faríamos a Ouro Preto, acompanhados pela professora de fotografia Vera (não me lembro do sobrenome).

Aproveite-a bastante!

Bjo!

E viva o Galo! Faça uma crônica sobre o Galo também. Ele merece! Rs!
Fernanda, suas palavras são nosso sonho com café. :) Deliciosas.

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