MINHA CULPA SIAMESA >> Leonardo Marona

Vinha lendo, já um pouco sonolento, o que o poeta dizia: “Está da hora de falar de mim / Vamos ficar de pé!”. Daí falava sobre “rifles, canções, repastos, galanteios”, sobre barbudos com as peles tostadas pelo sol, nenhum contava mais de trinta anos. E eu também não contava pra mim mesmo mais de trinta anos. E também fazia sol na janela da lotação. Eu não era mais barbudo, só isso, fora os repastos e rifles, que também nunca tive. Mas, lá fora, as pessoas, mesmo as barbudas, não pareciam tão tostadas pelo sol, ou melhor, parecia que o sol as tinha tostado de modo que se enrugaram em traços fechados de sentidos, irreconhecíveis ao sentido... Eu dormia, quando o ônibus pulou com uma falha no asfalto e então, de novo, ali estava ela, minhas mãos tremendo sobre as folhas da relva do poeta, e ela estava tão distinta, tinha umas alças muito finas segurando os seios, um dia meus seios, no dia em que acreditei na mentira do dia, que é o próprio dia que esconde a noite, e quando vemos a noite já é tarde para uma salvação não-líquida; com as calças bem justas ela mostrava o quanto tinha se divertido no sol invernal, os cabelos curtos a abaloados pintados com tinta barata, o couro cabeludo tinha uma linha da cor da tinta no cabelo, moldada à testa. Mas ela andava firme, passo ante passo, olhava pra frente sem demonstrar medo, e tínhamos tanto medo uma vez lá atrás, tanto medo juntos é tanta coragem, pensávamos, e eu tinha ainda o mesmo medo, medo de largar a corda, medo de voltar atrás, medo de ir em frente, medo do significado de determinadas atitudes, e ela estava com as duas mãos metidas numa bolsa de feltro, e com o queixo escorava o telefone celular junto ao ombro, e falava e ria, e eu passei meio sonolento, fechei minhas poesias, não haveria mais poesia até que eu pudesse senti-la novamente, sentir seu hálito, contar suas sardas, ver seu corpo se cobrir de panos cheirosos pela silhueta de uma luz pálida, observar suas canelas tortas, desproporcionais ao resto da perna, uma outra vez. Saltei do ônibus e voltei correndo, suando, chorando... O que o poeta tinha dito sobre as auroras que o perseguiam, os fantasmas que se curvavam sobre ele, o grande Nada inicial longe de onde um dia esteve, mas que aguardava sempre, sem ser visto, em meio à bruma sonolenta, nada disso eu entendia agora que tinha pulado para fora da lotação, levando meu poeta fechado dentro de mim, atrás do que tinha se perdido para sempre, porque se perde para sempre apenas aquilo que nunca se teve, e queria entender por que, queria ver você, meu poeta, queria entender desse Nada inicial... Mas enquanto eu olhava meu reflexo através do sol na janela, poucos cabelos, pele esticada, alguma remela, me aparece a culpa, vestindo jeans, sandálias, toda ombros e nuca, cabelos em coque, passos rápidos, e eu pergunto: “para onde vai minha culpa?”, “por que me deixa aqui, te procurando no meio da rua?”. Fico que nem pirulito em boca de criança, o sol diz que há vida, minha testa escorre a morte que derrete com a vida numa palma de sorte, porque estou ainda, senão vivo, chorando sobre duas patas. Te procuro, te encontro, finalmente. Estamos tão diferentes... Não consigo olhar minha culpa nos olhos, não consigo não falar de política, quando queria dizer que ela fosse comigo numa longa viagem pro desconhecido – como diz meu poeta. Não consigo não falar de financiamentos estatais para literatura, quando queria pedir a ela que lesse de novo pra mim aquele romance sobre a pesca das trutas, nós dois mais uma vez, nuca com nuca, esperando a hora de sonhar um o sonho do outro. Não consigo não perguntar sobre como vai sua vida, quando queria que ela me desse de volta a minha, sem perguntar nada. Nos olhamos, a culpa me apresenta seu novo gato siamês, o gato aparece no meu colo de repente. Mia sem parar. Gatinho simpático. Daí me dá duas lambidas nas costas da mão, de olhos fechados. Olho pra ele, “é ela”, muito bem, olho então pra ela, a siamesa (toda olhos e pelos) entregue a mim, lambendo suas patas traseiras como uma lady, patinha esticada, língua entre os dedos, ela me ama (a siamesa) sentada no meu colo, as duas patas dianteiras paralelas sobre a minha coxa esquerda, encosta em mim seu queixo (que nome dou a isso?, eu penso). “É Nikita o nome dela”. Muito prazer, Nikita. Ela me dá uma mordidinha, como se fosse o amor (antes da culpa), então me lambe outra vez, como quem quer dizer (e não sabe como) que o amor (não vê culpa) lambe.



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Comentários

Muito bom o trânsito entre os versos, o mundo e os pensamentos, Léo! Gosto demais desse seu ritmo.

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