SARA, MAGO >> Eduardo Loureiro Jr.
"Você escreve tão bem que faz a gente concordar com coisas que, examinadas de perto, descobriríamos não ser verdade", foi o que me disse meu orientador de mestrado após ler uma das primeiras versões de minha dissertação. Achei curioso o comentário — até o tomei por um elogio, mas só hoje me ocorre que talvez não tenha sido.
Alguns anos depois, já com um diploma de doutorado na gaveta, foi a minha vez de pensar a mesma coisa sobre um outro escritor, o Leonardo Marona, que escreve aqui no Crônica do Dia: O Léo escreve tão bem que faz a gente gostar de coisas que, se avaliássemos bem, não deveriam ser gostadas.
Há poucos meses, aconteceu novamente, ao ler um livro de José Saramago, "Caim". O cara escreve tão bem que a gente perde a noção de que está lendo uma série de absurdos.
Curioso é que há algo de comum em nossos sobrenomes: Loureiro, Marona e Saramago. São todos enganadores.
Loureiro é uma árvore cuja origem é explicada na mitologia grega. A ninfa Dafne, já cansada de tentar fugir do assédio amoroso do deus Apolo, pede a seu pai, Peneu, que a livre de tal situação. O pai então a transforma numa árvore, o loureiro. Apolo, que não pôde ter Dafne como mulher, escolheu o loureiro como árvore sagrada, levando sempre consigo um ramo de louros. Ou seja, o loureiro se refere a uma fuga por encantamento, a uma tentativa bem-sucedida de engano dos deuses.
Marona remete a mar, ao seu movimento contínuo e enganador. O mar que é calmo após a rebentação. O mar calmo que esconde buracos, depressões, mesmo perto da praia. O fundo alto-mar, cheio de mistérios. O mar dos monstros e das sereias. O mar que atrai e seduz. O mar que trai e mata. O mar pequeno, a praia, com o qual lidamos no dia-a-dia. O mar longo a se perder de vista. O mar correnteza que nos leva a naufrágios.
Saramago traz em si a magia, o ilusionismo, essa forma sedutora de engano. E bem que poderia ser também Saramágico, o engano pela distração, o driblar da atenção, a armadilha para os olhos. Enquanto o outro vê o que o mágico quer que o outro veja, o mágico faz outras quase invisíveis que dão um resultado inesperado para o espectador desatento.
Loureiro, Marona e Saramago são enganadores, cada um em seu estilo. Sofrem da doença do ardil.
Ontem Saramago morreu. A "múltipla falha orgânica", de que fala a nota oficial, trata-se do estado final dessa doença degenerativa do engano. Enganou a nós, leitores, com maestria, mas não conseguiu enganar a morte, essa leitora mais experimentada.
Marona e Loureiro já estão avisados. Embora não sejam enganadores a ponto de ganhar um Prêmio Nobel de Literatura, estão brincando com fogo, soltando balões de São João perto do Morro dos Cabritos. Mais dia menos dia, chegará a vez de também eles prestarem contas de seus ilusionismos.
A essa hora, no Tempo sem horas, sara o mago de sua terrena doença. Seu médico talvez seja, por ironia, o deus em que ele não acreditava. Marona e Loureiro continuam doentes de mar e de árvore. Ficam aguardando o dia em que a morte lhes mostrará — sem ciladas de palavras — a sã verdade.
Comentários
ainda bem que a mágica imortaliza os mares, as árvores, os deuses e os magos. Se não enquanto eles existirem, pelo menos enquanto ela existir.
Cada cantinho...
Tem o Quê de poesia, Eduardo!
Grande enganador,
Grande encantador!
Abraços!
amém.
digo a ti, a mim, a nós: ite!
é só o que nos resta: caminhar vendados pelas brasas ainda vivas.
beijo de coração do leitor ardiloso,
marona san.
Vc escreve tão bem que perco a noção do que estou lendo. Mas, nao leio absurdos, leio beleza, leio magia, leia a vida...
Sem palavras fico eu!
Meu encantamento com seus textos já passam dos 10 anos!
Perfeito
Beijo
Texto de homenagem, tão bem escrito que ficou muito, muito digno do homenageado.
beijos