SOBRIEDADE >> Carla Dias >>

Há alguns anos, escrevi um poema-romance chamado Prisão, flores e luar. Quando comecei a escrevê-lo, ainda era a pessoa com uma bagagem imensa de sonhos e desapontamentos, sem saber para qual lado pender. Eu raramente saía de casa, então a ideia de um final de semana de exorcismo emocional, trancada num apartamento e passando por uma autoanálise poética, poderia resultar em algo interessante.

Não sei se o escrito é bom ou ruim, se teria alguma chance no meio editorial ou se cairia bem nas emoções de alguns leitores. Mas relendo alguns trechos encontrei coisas nas quais ainda acredito, como o fato de nos viciarmos nos nossos vícios. Viciar-se é de uma facilidade desastrosa.

Eu me viciei em séries de tevê, por exemplo. E confesso que é um vício que não quero descartar. Sou viciada assumida em cinema, em literatura e em música, e em algumas saídas dramáticas para evitar perguntas. E em silêncio... Adoro o silêncio.

Há outros vícios sobre os quais não me sentiria muito confortável citando em uma crônica. Mas como a escrita é a minha única herdeira de liberdade pessoal, que se dane o desconforto!

Sou viciada em ficar só, em andar de ônibus, em comida, em sonhos, em dias cinza. Revisito os excessos destes que parecem vícios inofensivos, os coloco nas alturas, agrego a eles certa sofreguidão. Afinal, há diferença entre gostos e vícios, e, mesmo sabendo disso, vicio-me novamente neles, depois de muito tempo tentando torná-los nada mais do que deveriam ser.

A cada vez que tento me moldar ao desejo de não ter vícios, vicio-me novamente em algum vício que deixei guardado por um tempo. Como contemplar girassóis, dançar na sala, de madrugada, beber café mais do que deveria. Sonhar canções dedicadas, dedicar poemas, contos e romances, abdicar da realidade contundente, esbaldando-me naquilo que é a única coisa que ninguém pode me tomar sem ter muito trabalho: a capacidade de imaginar a vida, ao invés de vivê-la.

Estou sóbria há cinco horas, dois minutos e sete segundos. Vivendo a realidade como se apalpasse texturas, ruminasse gostos. Minha sobriedade é das cantigas de roda, dos telefonemas afobados para resolver problemas, do alívio ao conseguir fazê-lo e do desapontamento se não for possível. E também da imaginação livre, mas de um jeito manso, sem urgências que não são minhas, mas que nascem apenas para incitar a existência dos abismos.

Estou sóbria há cinco horas, quatro minutos e dois segundos... E como diz a personagem do livro meu que reli: o meu ‘o que sinto’ é escandaloso. E, ainda que em silêncio, fogos de artifício. Multidão de sentimentos. Vida em riste.

www.carladias.com

Comentários

albir disse…
Também tenho alguns vícios dos quais não quero me livrar: ler Carla Dias, por exemplo.
Carla Dias disse…
Você sempre gentil, Albir...
Carla, essa semana, por duas vezes, quis definir o que escrever para o Crônica do Dia significa para mim. Nenhuma das minhas tentativas foi tão boa quanto essas suas palavras: "a escrita é a minha única herdeira de liberdade pessoal". Não bastasse isso, ainda compartilhamos alguns vícios confessáveis e inconfessáveis. :)
Daniel Oliveira disse…
Você deveria citar que no caso do café foi contagioso né?
Carla Dias disse…
Eduardo... Que nossos vícios confessáveis e inconfessáveis continuem em sintonia.

Daniel... Você tem de parar de tomar café como se fosse coca-cola : )

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