PEQUENAS EPIFANIAS RIMBAUDIANAS >> Leonardo Marona

"rimbaud"

a criança podia apenas acreditar
nos órfãos e nos seres selvagens.
“Napoleão III merece a navalha”,
você gritava nos bares, agarrado
ao professor pederasta que dava
livros impróprios à criança rude:
Rabellais, Villon, Hugo, margem
que te daria o inferno exemplar.
todos no vilarejo te reconheciam
pelo riso fino e as mãos operárias,
o lábio semi-leporino, e as novas
pretensões ruminantes de sentido.
hoje sabemos apenas dos cabelos,
dos teus braços curtos para flores,
mas acima de tudo os teus cabelos
formados pelo ar gelado da longa
partida sem volta que melhor seria
perder de uma vez a perna, rasgar
de cabo a rabo o senso de perigo,
coisa que dói o estômago e incha
os olhos deslumbrados, sensação
aterradora de liberdade, quando,
firmes, as mãos nos bolsos vazios
nos levam facilmente até o cume,
onde viramos adultos e morremos.


"resposta insuficiente para rimbaud"

porque já não tenho mais como abandonar
o que você sempre desprezou em cifras,
porque não tenho Zanzibar, nem ao menos
uma mísera Pasárgada reconhecível,
mas, principalmente, porque sou fraco,
e acho beleza nessa antiguidade suplicante,
e porque já pesam sobre mim o bastante
meus 28 anos, minhas poucas viagens,
e porque as ondas, banhadas em ácido,
nunca interferiram na delicadeza frustrada,
e os sinos de nenhuma St. Paul’s geométrica
badalaram sobre mim industrialmente.

sinto febre de música, e de movimento,
talvez ainda errarei bastante, assim espero.
não chegarei, obviamente, a ser sábio,
mas algo faz eu me afastar dessas arestas,
algo que vem de longe, talvez da época
em que os coelhos eram humanos bons,
e não se absorviam tantos fluidos cerebrais.

talvez um pouquinho de ti, mas não a fuga,
muito mais o pavor de ser-te em pretexto:
raspar os cabelos, banir o piolho poético,
chantagear, quem sabe, o amigo sodomita,
mas talvez falte ter querido ir mais adiante,
balão às pressas de estourar por culpa física.

mas a ti digo não, porque não é a palavra
de quem ama, de quem publica nossos livros,
de quem não dá adeus, mas sofre por dentro
das margens instransponíveis da linguagem,
seja para lamber, ou para xingar, ou ao léu,
e, afinal de contas, futuristicamente falando,
o que faria eu, agora, com um arranha-céu?

muito bem, meu irmão de mãos vermelhas,
eu direi não a ti, como a falha premonitória,
direi não às místicas caminhadas de roer
costelas até chegar ao estômago estragado.
direi não aos professores fúnebres, veados
sem sucesso e por isso mais bem sucedidos.

direi não até, quem sabe, eu amadureça,
para ser jovem como a estrada perigosa
exige, e que se apresenta nas curvas,
não nas retas que nos levam à Rússia,
parando em Viena, e que nos retornam
de volta à mãe, a única fiel, com falhas
ao coração parnasiano, para que no fim
a senhora – e não direi senhora – venha
velar meu corpo, gangrenado, translúcido.


"à esposa abissínia de rimbaud"


a retomada da primeira masculinidade,
quando os versos eram sobre os campos
e as mulheres germinavam nos vestidos
a maravilha agressiva do primeiro sexo.

a retomada foi uma pele curtida e crua,
modos europeus, cigarro sempre no bico:
o milagre vinha da tribo islâmica argoba,
e eles andavam, as mãos dadas, o corpo.

a retomada da primeira masculinidade
ainda doída, com os dentes quebrados,
mãos descascadas, vermelhas, enormes,
inflamação nas juntas latentes do amor.

vocês se amavam em silêncio utópico
enquanto hienas rodeavam os corpos
dos inválidos nos esgotos inexistentes.

o calor desértico te fez inchar as juntas,
ademais essas andanças de malabarista
que te levaram enfim: agora és homem.

e como homem deves viajar para longe,
acumular riquezas, reclamar em cartas
para a mãe avarenta, sobre tal doença,
que é doença da distância, o carcinoma
que vai comer o ex-menino pelo joelho.

e ela estará, Zelda Fitzgerald africana,
e compreenderá pouco, e dará muito,
como as reles mulheres das tavernas,
que davam o decote ao servir o chope.

e mesmo podre, enrolado na ambição
mundana, tu exalas ainda a pestilência
tenebrosa dos que recebem, e se vão.



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