A DOR DA DÚVIDA >> Kika Coutinho

Marília era uma colega de trabalho que logo tornou-se grande amiga.

Eu lhe contava as minhas esperanças e sonhos, meus anseios e preocupações, e ela, um bocado mais velha do que eu, contava-me de suas dores e frustrações, suas tentativas fracassadas e seus problemas sem fim.

Marília passava por um casamento muitíssimo conturbado e tentava com unhas e dentes manter aquela relação, já tão desgastada. Eu, que era uma menina jovem e solteira, sentia um misto de pena e admiração por aquela mulher. Ela era brava como uma leoa protegendo os seus filhotes, enquanto o marido, que eu conhecia mal, não manifestava a mesma força e gana para manter aquele amor.

Foi numa manhã ensolarada que Marília chegou com uma excitação diferente: “Você não vai acreditar!”, ela disse, meio que animada, meio que chocada. “O que foi?”, perguntei, entusiasmada. “Achei uma coisa no bolso dele, achei!”. Ai meu Deus – eu gelei diante do fato. Marília correu, me chamou até o banheiro e lá, ambas assustadas, ela tirou da carteira um pequeno papel, um pedaço de uma embalagem plastificada que eu nunca decifraria de onde viera. “O que é isso, mulé?” perguntei, aflita. “Fala se não é um pedaço de uma embalagem de camisinha!”, ela me respondeu, certeira. Fiquei entre a minha dúvida e a certeza dela: “É?”, perguntei-lhe, indecisa. Marília dizia que era, que era e que era. Logo concluiu que não era à toa a distância, as reuniões até tarde, a frieza incondicional — mesmo que ela tentasse um aquecimento global — entre os dois... Estava tudo ali, ele a traía e isso mudava completamente a disposição de tudo.

Será que ela devia lutar? Será que ainda valia a pena insistir na terapia? Será que deveria ainda perfumar-se e cuidar-se para aquele homem que, afinal de contas, vivia um — ou vários — casos extraconjugais? Enquanto Marília tinha certeza, eu peguei a tal embalagem e sentenciei: “Amiga, isso pode ser tanta coisa.... Olha, é um pedacinho de nada...”. Ela lembrou-se de achar o tal papel depois que ele voltara de viagem. Havia passado dois dias fora e voltara com um pedaço de uma embalagem de alguma coisa, só poderia ser isso, ela dizia ainda sem querer acreditar.

Tivemos então a idéia mirabolante. Vamos checar. Vamos a uma farmácia, um supermercado e vamos ver se tem alguma embalagem do que quer que seja que bata com esse seu minipapel aí. Vamos? Ela não titubeou. Abandonamos o trabalho com pretexto de vida ou morte — o que, de fato, não era mentira — e lá fomos nós. Eu e minha amiga entramos no Carrefour, achamos a parte dos preservativos e, pasmem, nenhuma batia com aquele pedaço de embalagem. Nenhuma. Ela começou a ficar na dúvida, enquanto eu tentava a parte de alimentação. Confesso que não era craque em camisinhas, mas sabia tudo de ruffles e, para mim, aquilo era um pedaço da embalagem de alguma batatinha chips.

Já estávamos quase desistindo quando, de repente, eu achei. Aquele instante de surpresa foi como acertar no alvo de alguma coisa, um pernilongo que eu matei, um tiro bem atirado, uma foto em seu instante exato. "Achei, achei", eu gritava com um pequeno pacote de amendoim nas mãos. Isso mesmo, um pequeno pacote de amendoim, desses que distribuem em avião, era exatamente a prova do crime que minha pobre amiga tinha em mãos. As cores, o formato, eu encostei o pedaço dela no pacotinho e não restava dúvida. Saí correndo para encontrá-la — ainda nos preservativos.

— Amiga, amiga, achei! Olha, amiga, não era nada daquilo, era amendoim! — eu gritava, animadíssima, no corredor do Carrefour. — Ai que bom, que bom, ele não está te traindo, olha, não está — eu repetia, numa euforia desmedida, quando ela, muito séria, pegou da minha mão o pacotinho e, reconhecendo que o maior pecado do marido fora aceitar os amendoins que de certo lhe ofereceram no avião, disse simplesmente:

— Que pena...

Eu me assustei de início, fiquei ali paralisada sem entender o que era óbvio. Foi ainda dentro do Carrefour, enquanto caminhávamos para a saída, caladas, que eu me dei conta de que, às vezes, tudo que queremos, desejamos e esperamos é — apenas — o pior. Nítido e claro, diante de nossos olhos, o pior, sem nenhuma sombra de dúvida.

Comentários

Anônimo disse…
Sempre é bom que a culpa seja do outro, o uso do bode expiatório é antiiiiigo!!Abraços, Kika legal o texto.
Eu sei que sou seu fã nº 1, mas hoje vou reclamar. :) Pra que esse parágrafo final depois do impacto daquele "— Que pena"? Ali era o final perfeito.
De todo modo, você sempre nos conduzindo com maestria, contando histórias verdadeiras, tocantes e surpreendentes. :)
Amor amor disse…
Olha, essa história é muito educativa mesmo! O Eduardo tem até certa razão, mas não dispenso seus comentários finais.

Beijocas doces cristalizadas!!! ;o)
Anônimo disse…
realmente, às vezes esperamos que justamente o pior aconteça... obrigada pela crônica, veio no momento exato para mim.
beijos admirados ^^

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