A conquista do parágrafo >> Leonardo Marona
“Por outro lado,
sempre os outros morrem”
(Marcel Duchamp)
sempre os outros morrem”
(Marcel Duchamp)
Começo o texto por um famigerado título: “Envelhecer”. Mas é tudo mentira. Ninguém envelhece com alguma consciência. Envelhecer é perder a consciência ao falar em nome dela. Mesmo assim, duvido muito que o título permaneça até o fim deste pequeno relato. Na verdade, detesto a palavra “relato”, mas prometi a mim mesmo, dessa vez, não suprimir nada. Os velhos, afinal, acumulam coisas, “experiências”, eles chamam assim. Anoto em papéis amassados coisas sem importância, perco os dentes pelas ruas enquanto a chuva me consome, casei-me enfim, escrevi um livro, é como se me beliscasse o tempo todo. As pessoas – cada vez mais eu acredito – se casam por medo. Não que seja um inferno amar alguém. Mas só ama quem tem medo. Será que tenho medo ou, afinal, não sou uma pessoa? Os corajosos desbravam ilhas e mastigam ópio. Os medrosos se casam, compram cigarros no varejo. Não faz muito tempo eu chorava bastante, sentia uma raiva incontrolável da qual me orgulhava. Brigava nas ruas, abraçava inimigos, cuspia no chão. Os cabelos voavam com o vento e as meninas, muitas vezes, brincavam de quem-consegue-ficar-mais-tempo-sem-desviar-os-olhos. Não faz muito tempo, tratavam-me como um embusteiro, diziam: “Não há dor para tanta lágrima, trate de se mexer, arranjar um emprego”. Arranjei mil empregos, mas a força do hábito antecipa demais as emoções. A verdade deve ser sempre tratada a pontapés. Hoje sequei. Parece que sou movido por guelras de peixe. Forço o choro dentro do ônibus, enquanto faço minhas anotações ou escuto Roberto Carlos. Detesto Roberto Carlos, escuto Roberto Carlos, sou um homem moderno, detesto os que sorriem o tempo todo, usam calças compridas sem ter pernas e dizem frases importantes, jogando rosas enquanto olham o relógio. É mesmo curioso: se ao acaso me pego com a visão umedecida, se forço a dor para fora porque por dentro estou enferrujado, sei que não passa de um subterfúgio, mais uma mentira, espécie de saudosismo vazio anti-heróico. Mas logo aparece alguém compadecido, com frases imperativas e mãos frias, cheio de esperança e votos de força, suando as têmporas, não vendo a hora de se livrar de ti, tentando te levantar o ânimo, falar sobre a beleza da vida e as cores do planeta. As pessoas não valem o que comem. Basta verem alguém forjando emoção e logo montam com ela, silenciosamente, um cartel sentimental. Eu, de minha parte, escrevo apenas textos fragmentados, aforismos, receitas longas de um só parágrafo, instruções para uso, imitações baratas de Campos de Carvalho, enfim, coisas de quem está ficando senil. É, portanto, uma falácia a sabedoria que vem com o tempo. O tempo, ao contrário, nos arranca fora a sensação de ultimato, de que qualquer segundo significa uma vida inteira. E as idéias, já dizia um velho indiano muito magro, apenas adiam por alguns instantes o movimento equivocado, dado aos solavancos, os pés de um vômito bestial, beato de ingenuidade e pavor, que compõe inimagináveis genocídios, enquanto, por outro lado, ficamos satisfeitos em não falar mais com nossos pais. Quanto mais tempo passamos vendo o que não entendemos, menos entendemos e mais acreditamos que sabemos mais. Essa equação um tanto óbvia, no entanto, se dissolve quando chegamos a um velório e dizemos “sinto muitíssimo, uma perda inestimável”. O fato é que envelhecemos apenas porque não sabemos morrer. A voracidade com que me dirijo a um prato de sopa diz qualquer coisa sobre a falta de fome. Envelhecer é comer sem fome, amar sem medo, escrever sem razão, ganhar prêmios e, com um pouco de estabilidade, rir da vida. Nada muito diferente do que os internados fazem nos hospícios, portanto. Mas não quero me sentir soturno assim, com idéias demais. As idéias servem apenas quando deus está entediado. Então guerrilhamos e ele se diverte, arreganha outra vez os dentes, passa a mão na barriga. Mas preciso, hoje, lutar com os punhos limpos, ao menos uma vez. Não espero muito e tenho medo da enorme onda, mas não quero ter os pés juntos quando, enfim, rezar. Não posso mais enrolar as palavras, limpar com indiferença a ternura da minha falta de tato. Quero pés de vento para fugir de uma boca estranha que me arranca pequenos pedaços diários mesmo que, diante do espelho, apenas tenha havido uma leve inclinação dos olhos que, apesar de sadios, diria até ágeis, já viam muito pouco. O rosto envelheceu pouco, mas os olhos se desgraçaram por completo, já não fazem mágica, ganham tempo ainda fora da enorme boca. De que adianta, nesses dias chuvosos, uma capa de detetive e um poema de Pessoa? De que adianta, Pessoa, senhorzinho insignificante de bigode, disfarce pleno de coisa alguma, de que adianta, por acaso, fazer versos de punho em riste para entrar no mesmo bar todos os dias e pedir um pouco de conhaque para alimentar o câncer futuro? Pare já de dizer esses nomes importantes, exclamações de guilhotina, palavras difíceis. Tentarei fazer o mesmo, não o culpo. Não suporto mais falar da minha própria condição, mas só posso fazer isso, já que minhas mãos agora são metralhadoras que anestesiam com cortisona as frases e diminuem a dor de cabeça por um dia ou dois, às vezes por minutos, mas os pés balançam, entregam a tensão por debaixo da escrivaninha, e não há mais o que dizer sobre campos ou vidas toleráveis, não há o que falar sobre as desventuras de homens gigantes e dos pecados aprovados por carimbos ilegais. Estamos completamente sós e precisamos, apenas, conquistar o mundo. Conquistar pelo menos o parágrafo, enquanto mudam os títulos.
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