A SEGUNDA FRASE >> Leonardo Marona

Hoje estou do tamanho do mundo. E, é claro, o mundo não cabe em mim. Estou do tamanho de algo que não cabe em mim portanto, e isso é patético. Sou como o resto de uma comida renegada mesmo pelos cães. Me dói por isso estar tão tomado por algo que ultrapassa os poros. E sem arma suficiente. Sem gritos e gemidos sobre uma evolução calma. Estar do tamanho do mundo então não passa de uma mentira. E, como eu, mentimos muitos. Ou seja, não tenho nem para mim o Milagre de Pedro, o Milagre da Exclusividade. Estou à beira do mundo e a sensação é de Gepeto à beira da boca enorme. Por exemplo, a segunda frase deste testamento tornaria a primeira genial. Mas acabei por perder a segunda frase, e tudo foi por água abaixo. E agora, como uma lasca descolada de uma parede horrível, despenco para o fim do parágrafo, porque a idéia inicial foi amputada.

E parece que vivemos todos assim. Reparo nos mortos que ainda se mexem. Esses que entram de muletas nos ônibus, com paralisia infantil. É claro que há um dostoievsquianismo nisso tudo, mas há também um sentido hipócrita antropológico. Quero saber como vivem os que vieram antes de mim, anos luz. Enquanto me preocupo com meus restos artísticos e faço questão de não dar valor ao Animal Enorme, que me alimenta com esmolas e ri, outro fez escolhas mais raras, entre o corpo e o Corpo Maior, ficando por inteligência com o corpo, e pela inteligência sendo engolido pelo Corpo Maior, bem mais faminto e de boca mais ampla.

Não são poucas as vezes que sinto vontade de coçar os olhos. Perder a segunda frase é um trauma perfeito. Porque as segundas coisas todas são as descartáveis, que revelam a falta de preparo para a primeira. E só o que resta são contradições.

Preciso fazer algo, preciso falar alguma coisa genial. Isso me torna automaticamente tão patético quanto um travesti com pretensões de passarela. Ao mesmo tempo sinto dor e, obviamente, me refugio nisso, e nisso erro as palavras, porque se tem algo que sei, é que isso não é novidade nenhuma, e milhares de pessoas fazem isso ou usam isso melhor do que eu. Mesmo falar em termos qualitativos assim com tanta naturalidade que me deixaria ainda mais longe do ponto inicial, da segunda frase que me fez sentar aqui.

As coisas se misturam, acendo um cigarro no outro, sou qualquer um em pânico. Na sala, as mulheres conversam. Sinto que, sem mim, se dão uma com a outra melhor. As mulheres se dão bem, desde que não haja um homem por perto e elas possam, depois, se atacar pelas costas. Agora ficaram quietas, talvez tenham lembrado que estou aqui, bem ao lado, mas noutra dimensão. Teve uma época em que dizia isso com orgulho: “Outra Dimensão”.

As idéias talvez estejam acabando, fumo o cigarro num trago difícil, sinto engulho, percebo que estou me desvirtuando. Outro dia chegou perto de mim alguém que me lembra uma máquina humana, que freqüenta as festa e ainda é talentosa, ou seja, que com certeza almeja a perfeição. A ela eu dizia sempre, desde que nos conhecemos, sei lá por que motivo, que era um ator de teatro, e falávamos sobre teatro, um assunto que abomino. Portanto lá estava eu, falando sobre minha última peça, sobre como eu me sentia fadado a carregar uma cruz inumana. Então ela, que era uma apresentadora de TV famosa, me disse: “Você não se cansa de fazer a mesma coisa todos os dias?”.

Aquilo me matou, e me colocou pela primeira vez no mundo, que agora era uma coisa maior, e eu não estava dentro dele, ou melhor, estava, mas era um resto pútrido. Veja bem: eu mentia pelo bem da alma e da cruz encaminhada por séculos de provações empertigadas. E aquela mulher queria pouco, tudo que lhe dessem, e funcionava com habilidade insuspeita na busca da perfeição.

Já não quero falar no assunto, me entedio, o tempo passa rápido demais. Por delicadeza perdi minha vida. Eis a frase que inaugura o trauma dos muito humanos. E aí está um garoto, um arquétipo de olhos queimados, uma síndrome de verdade anterior que deve e será desprezada.

Finalmente reparo num detalhe que, só por um momento rápido, parece muito importante. Não tenho as duas pernas, tudo em volta é branco. Sou, portanto, um homem de poucos movimentos. Impossível não vir de imediato a frase que ouvi a vida inteira: “Nossa, como você é agitado”, hiperativo, diziam. Sem movimentos, reparo, sou obrigado a pensar, não me resta mais nada, até que enfim, estou com a boca torta, mas, pela primeira vez, me sinto pleno. Não há mais compromissos, a não ser pensar na morte.

Sempre gostei de enfermeiras, não tenho direito a uma. Muito pobre, tenho o que mereço. Meu pai terá a essa altura seu segundo filho. Dirá a si mesmo, enquanto a esposa dorme vendo um filme na televisão: “Que posso fazer? É tentar outra vez”.

Acabei de participar de um jogo no qual você escolhe certas atitudes e no final de dez situações é dito o livro que você seria, se fosse um livro. Façam vocês também:
http://educarparacrescer.abril.uol.com.br/leitura/testes/livro-nacional.shtml

Eu fui Memórias Póstumas de Brás Cubas, que de fato é o melhor livro do Machado de Assis, porque é o único com um argumento original, o de um homem que já morreu e falará de si mesmo. Talvez seja a única posição viável para um homem falar de si.

Minha namorada – hoje nos chamamos marido e mulher – acabou saindo com a opção A Paixão de GH, o enigma feminino de Clarice Lispector. Ela ainda teve outras três opções, em ordem: O Alquimista, do Paulo Coelho; Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade; Morte e Vida Severina, do João Cabral de Melo Neto. Agora que sei disso e não tenho mais pernas, quero me casar com ela, definitivamente. Muito mais pelo Paulo Coelho, é claro. No entanto, percebo que já sou casado; talvez seja ela ali, encostada no branco, cama, enfermeira, parede, sonhos esquecidos. Sem pernas percebo que ainda é possível fazer muitas coisas.

Qualquer um pode perceber que esta é a historia de um homem sem pernas que, finalmente, descobriu um caminho. Um homem sem olhos que, num relance, apalpou a carne. Mas falemos de fotos, acredito que ouça alguma coisa acerca disso. “Essa aqui é bem bonita, ele tão novo, ruivo, com a camisa do Grêmio”. Esta com certeza não pode ser minha mulher. Já me conheceu com a peruca do tempo, warholiana, quando não me interessava mais por futebol e respondia desinteressadamente a todas as perguntas. Às vezes me lembro que bebia, e queria questionar as perguntas. Mas isso era raro, acabava com um mijo na cama. Um beliscão na cervical, e percebo que estão me virando, mexendo em meu cadáver proposto por Brás Cubas. Aliás, não tive opções a não ser Brás Cubas, Brás Cubas e nada mais. Aquilo era uma afronta, ia muito mal, eu falava mal sobre Machado de Assis nas ruas e no trabalho, quando, é claro, era capaz de andar. Mas, engraçado, mesmo sem pernas, aqui neste cenário todo ele branco, ainda contínuo patético, e de uma forma estou vivo. Talvez seja esse o sentido da existência. A procura da segunda frase, que de todo modo não virá.

http://www.omarona.blogspot.com/

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