O QUE NOS CABE? >> Carla Dias >>


- E se for hoje?
- Então, viveremos o dia com o desespero em êxtase.
- Será hoje...
- Pode ser...
- Será que será?
- Vai saber...
- O tempo tem dentes... Vai nos mascar feito chiclete.
- E de qual velocidade seríamos partidários?
- Nesse dia? Do desejo desmedido; daquele quê oferecendo prazer insustentável.
- Comeríamos?
- Frutas desmascaradas de estação. E engoliríamos o ócio... Só haveria espaço sem tempo para ações... Desmascararíamos teorias.
- Teorias podem ser construtivas, fortalecer realizações...
- Ações dão na poesia que me ganha e disso não consigo me desfazer, e nem quero. Afinal, as teorias que ficam na teoria acabam por desbotar sonhos.
- Arrepios provocados por beijo na nuca...
- O quê?
- Pedirei uma porção deles... Se for hoje...
- Pra quem?
- Sei lá!
- Sabe lá?
- “O que é morrer de sede em frente ao mar?”
- “Sabe lá?”
- Sei... E você?
- Talvez...
- E?
- Surrupiarei trocados de amigos tacanhos para comprar balas de hortelã.
- Por que balas?
- Balas de hortelã me lembram a infância com meu avô. A língua refrescada, atiçando gargalhadas. Era troco do pão, da pinga, da lata de molho de tomate. Bala de hortelã era o tipo de troco que se dava ao menino apaixonado pela infância, pelas suas brincadeiras e suas seriedades, como era o amor que eu tinha pelo meu avô... De uma seriedade imensamente feliz.
- E se não for hoje?
- Pode ser amanhã, né?
- Pode...
- Pode ser nesse presente que, de um fôlego se torna passado. Pensa bem... Eu te conheço no raso. Se não for hoje, poderei me identificar com descobertas sobre você. Aprofundar-me a respeito da sua humanidade, qualidades e defeitos.
- Mistérios particulares à espera da companhia das traduções. Por que esperamos tanto para mergulhar um na alma do outro? Por que tanto receio em nos entregarmos a tal jornada?
- Talvez temamos nos identificar com quem não poderemos compartilhar a vida.
- Mas no receio, nessa proteção exacerbada, não há também o risco de não lapidar a capacidade de reconhecer a intimidade? Essa distância me endoidece, sabe? Todos nós merecemos ser desvendados, ainda que jamais alguém chegue a nos traduzir as entrelinhas.
- Eu já sei que você gosta de horizonte... Por que seu olhar se perde nele desse jeito? O que há de tão especial no além de?
- É meu jeito de alimentar a alma. Na verdade, o horizonte me permite outro tipo de olhar, aquele despido de alvos. Não há precedentes, esquetes, conjecturas. É um olhar honesto, que não julga, não manipula emoções. Abraça o que alcança.
- Crueza...
- A beleza que pode haver nela...
- Matará a tal sede com? Sendo hoje?
- Sutilezas... A chuva caindo no rosto, os pés dançando músicas que não escutei antes desse dia. A dança da novidade num momento de partida. E colarei lembretes pela casa, pelas ruas, pelo mundo, para que jamais nos esqueçamos de quem fomos e quem nos tornamos. As importâncias... Você?
- Farei de conta que será somente amanhã, não hoje. Retardarei o inevitável, ao menos dentro de mim. Porque não quero deixar de existir, justo agora que começo a compreender inquietudes. Gostaria de desfiá-las, criar futuro com essas compreensões.
- Mas e se for hoje?
- ...
- Não há resposta certa, não é mesmo? De um jeito ou de outro...
- Morreremos de sede...
- Em frente ao mar...
- Ironia sermos ceifados pela solidão justo agora que sabemos um pouco mais um sobre o outro.
- Mas há o medo que nos afasta da proximidade.
- Ele sempre estará presente entre nós.


- Sempre é quando?
- Logo mais... Hoje ou amanhã... Sendo hoje, daqui a pouco.
- Daqui a pouco nos distrairemos um do outro, das nossas reflexões. Apagaremos as descobertas, colocaremos a culpa de não conseguirmos ficar um pouco mais na nossa humanidade, e seguiremos com a vida.
- Sós...
- Olha, foi bom te conhecer.
- Pois é... Uma pena que me desconhecerá daqui a pouco... Hoje ou amanhã não é tempo suficiente para nós.
- Ainda haverá o seu olhar...
- Despido de alvos...
- Desnaturado com os rótulos.
- Melancólico, porque ele sempre buscará por esse momento e, sem encontrá-lo, sofrerá de desabrigo.
- Antes fosse daqui a um ano...
- Aprenderíamos a ficar, nesse tempo?
- Não sei... Acho que não... Começo a me dar conta de que não se trata de tempo.
- Bastaria um segundo, se realmente estivéssemos prontos para mergulhar um na alma do outro.
- E o medo?
- O medo... Quantos fins de mundo ele nos oferece durante a vida, não?
- E temos de aceitá-los?
- Cabe a nós transformá-lo em começos, não em fins.

Imagens: "Descending Angel"/ "Ascending Angel" >> John Wimberley

www.carladias.com

Comentários

Carla, deixa ver como é que eu coloco meu peito em palavras...

É que eu tenho estado com tanta fome desse "hoje" de que você fala. E ler esse desejo do hoje num formato que eu tenho praticado bastante - o do diálogo sem narração - me deu a sensação de que era eu mesmo que estava escrevendo. Só que eu jamais escreveria essas coisas que você escreve. Então é como se houvesse algo dentro de mim escrevendo: vozes de seres que talvez estejam justamente adiando o saciar da minha fome.

Doido, né?

Grato por essas doideiras lindas que você escreve,
Carla Dias disse…
Eduardo... Eu te entendo por demais. Já aconteceu comigo de ler tuas palavras e me sentir dentro delas e de um jeito tão próximo; o assunto assoprado como se eu mesma o tivesse feito. Mas ao mesmo tempo, tão outro.

Que nossas doidices se completem... Sempre!
Carlos Vilarinho disse…
Muito bom, Carla!
Sempre ontem e mais hoje, talvez amanhã.
Carla Dias disse…
Obrigada pela visita e pelas palavras, Carlos.
Unknown disse…
PUTAQUEPARIU!!!

Que seja agora:
AGNeS DAY!

AMÉM.
Anônimo disse…
Querida Carla
Adorei as imagens que voce escolheu, porque dá uma sensação de leveza, assim como as palavras usadas para descrever essa vontade de viver o hoje.
Espero ter essa mesma suavidade quando o mundo disser não.
Beijos

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