Do lado de fora do umbigo do mundo >> Leonardo Marona

Do lado de fora do umbigo do mundo, nas ruas, havia carros virados tomados pelo fogo com pessoas dentro se contorcendo sobre tripas expostas como rosas urbanas.

Lá dentro, Jaime Bortoloni contava caroços de feijão por cima de um pano de prato pouco limpo, ouvindo a rádio MEC e querendo desmaiar sem sentir nenhuma dor. Não existem movimentos sem dor, ele sabia. E separava os bons caroços dos maus caroços, sem saber o que se passava lá fora e que, em algum lugar, em alguns muitos lugares, estavam também separando os bons dos maus, como sempre fizeram – a partir de quais critérios?

Jaime estava pensando. Isso era um mau sinal. Sinal de que, se não cuidasse o rumo pelo qual as idéias sujas tentariam arrastar sua idiotice tremenda, estaria muito em breve dentro da banheira novamente, ouvindo Tom Waits cantar everybody goes to heeeeeeeeeeeeell, mergulhando a cabeça e fazendo bolhas com o nariz até os dedos do pé murcharem.

Mas era divertido imaginar a tristeza alheia. Por isso ele separava os feijões olhando pela janela. A vizinha da frente masturbava-se inexpressivamente, como nos filmes sobre a decadente realidade norte-americana, tentando se esconder da própria existência, triste como a solidão do sexo sintomático, com os olhos grudados no passado, a testa retesada para a direita feito mula manca olhando um pedaço de cenoura sem poder comer. Pouco acima, um senhor de uns 210 anos diante da janela, a boca mexendo e o corpo independente, indo para frente e para trás durante oito horas seguidas, segurando um rosário e sentindo o câncer lhe avançar pelo ânus. Uma outra velha pendurada no parapeito de um prédio, limpando o mármore negro sem entender como ele continuava negro independentemente da força com que ela esfregasse a bucha e rebolasse as ancas por dentro de um mini-short com as cores do arco íris.

Lá embaixo, junto às explosões de óleo diesel, aos chafarizes de sangue, às panturrilhas estilhaçadas e às sirenes intermináveis, um vendedor maneta de ioiôs procura saber de alguma forma se algum dia vai conseguir vender algum ioiô, sendo ele um vendedor maneta de ioiôs. Ao lado dele um velho mendigo – todos parecem velhos, mesmo os novos – com um camisão de flanela furado na altura da bunda, as calças bastante arriadas, chora de olhos apertados e com a boca frouxa, com as mãos em concha pedindo perdão e qualquer moeda que sirva para que, assustadas, meninas de braços dados avancem o sinal verde, rindo porque alguma coisa deve ser – tem que ser! – muito engraçada nisso tudo.

No que Jaime pensava durante os dias mortos? Passos. Passos para frente, passos para trás. Você dá um passo para frente e tem sempre alguém que fale: “por favor, senhor, dois passos para trás”. Daí você volta dois atrás e então te olham com um nojo disfarçado de desprezo e você fica imaginando qual a vantagem em disfarçar uma sensação com a outra. Então finalmente sempre vai ter alguém para dizer: “Ei, você! Você mesmo, não vai se mexer, olhar o mundo lá fora?” Então Jaime sente que alguém o está esperando. “Não seja egoísta” – em algum lugar continua a voz. “Não se desespere. Jamais perca o manejo da situação. Você. Você mesmo. Estou falando com você! Você tem que mostrar seus nervos de aço”. Jaime até o parapeito. “Tem que agüentar firme. Não adianta se esconder como um rato. Não seja mole! Vamos lá! Avante, camarada! Pela massa! Por todos nós!” Pobre Jaime, que sente mas não sabe.

Jaime preferia os que mandavam dar passos para trás. Pelo menos falavam menos. “E será que alguém seria realmente capaz de dizer sinceramente o que estamos esperando disso aqui?”, ele dizia a si mesmo. “Sem essa conversa de paz, liberdade, saúde e esfaquear alguém se for necessário”. Jaime encontra um feijão branco no meio dos pretos. “Porque eu adoraria saber o que estamos esperando junto com o fim de tudo que importa”. Ele então abandona os feijões e segue até o banheiro e liga o gás. “Eu mesmo não consigo imaginar dois minutos além de agora”. O gás estoura forte – necessita-se de um bombeiro. “E quando tento, os olhos me ardem”. Agora a torneira virada. “E se ando para trás, o peito incha”. Quatro minutos até encher. “Então fico preso aqui a esse agora pavoroso sem escolhas e cheio de cobranças e atitudes explodindo sobre o meu rosto, e nem mesmo sou totalmente mau”. A água corre quente, um pouco enferrujada – necessita-se de um bombeiro urgentemente. “E se fico no agora coberto por atitudes esperadas e cheio da gente cuspindo nojo sobre o meu rosto e colocando buracos infinitos na minha frente ao mesmo tempo em que me convidam para jantar e brindar, então a cabeça dói”. E lá estava Jaime novamente na banheira. EVERYBODY GOES TO HEEEEEEEEEEEEELL! Sim, é isso aí, Tom Waits.

E ele sabia disso há três minutos e o peito inchou e a cabeça doía. Porque ele não podia ter o passado e o presente ao mesmo tempo. Menos um dia, mais um. Quem consegue abandonar a contagem? Explosões e gritos lá fora. Cotações subindo e descendo, gravatas apertadas para o compromisso e frouxas para o mundo lascivo logo mais tarde, tudo isso sem ninguém entender por quê. Umas pessoas presas atrás de grades chorando, outras soltas nos jardins chorando mais ainda. As boas se fodendo, as más também, cada uma a seu tempo. Isso não fazia o menor sentido. Daí a solução dos prêmios e promoções. Os gênios não se sustentam por idéias velhas. Todo gênio se torna amargo, e os medíocres continuam medíocres – alguém mais esperto deveria dizer. Por isso você deve escolher entre apagar tudo e bola para frente ou pegar a bola e estourar com os dentes. Palavras não são absolutamente nada, não representam nada. Nós criamos as complicações quando estamos mudos, quando somos de certa forma poéticos e, por isso, nos reconhecemos como algo além do humano. A dor do mundo é simples, indelicada. Isso não admitimos. Vejam no que resultaram as obras geniais. O fim dos gênios, quando existem tantos por aí mastigando risadas cheias de cansaço e desatenção, rezando para não serem descobertos por ninguém, porque assim manda a moda antiga, e quem sabe morrer no sofá assistindo à programação televisiva vespertina de domingo.

Algumas opções para o fim provável de um gênio: um milhão na conta, publicado, faceiro, bebendo pesado e alisando gatos com um BMW preto na garagem. Morrer aos 74 anos. Ou então pouca grana, uma única mulher amada, duas pernas amputadas pelo doce exagerado, com vários fracassos de um lado e duas ou três marcas na história. Ah! Cego também. Morrer aos 74 anos. Poderia ser também passear por bares e festas, trepar vedetes de cabelos curtos, tomar vinho em odres amansando touros e cansando peixes enormes, com dois ou três fracassos e algumas boas marcas na história, de repente bebendo rum em Cuba com Fidel Castro, de repente roubando livros em Paris ou nadando em algum lago na divisa com a Espanha dominada por Franco. Quem não se mataria depois de tudo isso? Respondam sinceramente. Por isso existem tantos gênios hoje. Porque ninguém se mataria depois de tudo isso – não hoje. Por isso temos valorizado tanto as coisas e chamado tudo de qualquer coisa. Como um saco de feijão. Olha, isso aqui para um lado, isso aqui para o outro. E temos alguma coisa de fato? Eu sou melhor que fulano, tenho muito mais a acrescentar ao funcionamento do Estado. Eu sou melhor que fulano, tenho muito mais a acrescentar à literatura universal. Eu sou melhor que fulano, matei menos gente que ele e ainda por cima engulo hóstias aos domingos. E assim até o fim, até a próxima esquina, por muitos e muitos anos, desde que Jaime entrou na banheira e só saiu para contar os feijões para depois voltar ao gemido rouco de Tom Waits.

“Por que devo me mexer?”, se perguntava Jaime. “Já não temos coisas se mexendo o suficiente lá fora? Já não temos carros voando pelos ares o suficiente? Já não temos pessoas com os crânios esmagados pelos carros voando pelos ares o suficiente? Pés entrando e saindo dos bares. Pés sendo decepados para não haver mais escolha. Pessoas alterando constantemente o sentido das coisas, até elas virarem uma omelete de catarro. Pessoas vivendo para dar sentido às coisas num portal virtual qualquer, com a foto da pessoa no canto superior da tela”. Jaime preferia contar feijões a ser parte do mundo. Isso é um pouco complicado. É sim.

Ao pegar a toalha após o banho ouviu a campainha tocar. Secou-se um pouco se olhando no espelho. Sovaco, virilha, calçou os chinelos, vestiu uma bermuda e se arrastou até a porta. Já haviam cessado os toques na campainha. Agora esmurravam violentamente a porta. Alguém parecia estar com pressa. É sempre assim.

- Que merda! Já vai, porra! Que pressa toda é essa, puta-quiu-pariu? – disse Jaime, a mão na maçaneta, o olho no buraco do olho mágico.

- Precisamos falar com Jaime Bortoloni. É você, não é? Abra a porta. Somos do recrutamento.

- Mas eu já cumpri meu serviço. Fui dispensado por insuficiência física.

- Abra ou vamos ter de arrombar.

- Vocês têm um mandato?

POW! A porta veio para cima de Jaime, que deu um pulo para trás. Dois sujeitos de terno e gel nos cabelos não entrariam no apartamento de alguém dessa forma se não houvesse algo de muito errado acontecendo.

Colocaram Jaime sentado debaixo de uma luminária. Uma bacia cheia d’água ao lado. Jaime olhou para a bacia e pensou por três segundos sobre ela: “Com mil demônios!” Depois achou melhor pensar em outra coisa ou pelo menos tentar. Um dos sujeitos de terno tinha cara de açougueiro e segurava Jaime pela nuca. O outro parecia ter comido um fígado humano ainda quente, e dos bem usados, andava de um lado para o outro com os braços cruzados.

- Precisamos te fazer algumas perguntas – o primeiro homem disse.

- Se incomoda se eu ligar o som? – disse Jaime.

- Qual é a sua ocupação? – e pressionou um pouco mais a nuca de Jaime para baixo.

- Nada de especial.

- Você acredita em alguma religião?

- Isso vai depender.

- Exatamente do quê?

- Vai depender se você vai me delatar para minha avó! Olha aqui, amigo, eu não tenho feito nada de mais ultimamente, fora feijões. Então...

O sujeito que havia comido fígado humano recentemente se aproximou e penetrou uma agulha na altura do ombro de Jaime. Instantaneamente ele tomou a fisionomia de um idiota do mais alto grau, portanto se acalmou. O açougueiro sacou então um bloco e começou a anotar: “Candidato número 50.896 – Ala Sul”.

- Jaime, vou te fazer algumas perguntinhas, tudo bem? Basta responder com toda a sinceridade que podemos tomar umas cervejas depois, oquei?

Jaime fez que sim com a cabeça. Ele babava um pouco, tinha o pescoço ereto e os olhos viravam de vez em quando para dentro.

- Jaime, qual é a sua ocupação?

- Não tenho nenhuma, senhor.

- Puta que me pariu, Jaime, você precisa cooperar!

- Escrevo, finjo que trabalho e ouço alguns discos, senhor.

- Isso não foi uma boa resposta, meu camarada. Nada bom mesmo. Você tem alguma religião, meu jovem? Você acredita na moral dos bons costumes?

- Eu acredito na moral dos bons costumes, senhor. Exatamente por isso não tenho nenhuma religião, apesar de a minha avó se importar muito com isso. Ela ficaria triste se...

- Não me interessa! Chega dessa merda! Apenas responda ao que lhe for perguntado. Então você não tem religião, apesar de acreditar na moral dos bons costumes... E também não trabalha...

- Desculpe, senhor, mas eu não disse que não trabalho. Disse que finjo que trabalho.

- Ah! Então obviamente você poderia me explicar a diferença entre uma coisa e outra, não?

- Eu tenho um trabalho, vou lá e faço as coisas, trato as pessoas bem, tento ser prestativo. Acontece apenas que eu não me importo com isso. Não ambiciono nada disso. Nem sei se ambiciono qualquer coisa. Claro, isso me preocupa. Algumas noites eu como os travesseiros e dou murros na cabeça, chuto poste na rua. Às vezes fico um pouco apertado e tenho que me virar, fazer qualquer coisa, levantar algum, mas normalmente trabalho apenas pela moral dos bons costumes, e não porque gosto ou porque preciso. Por isso eu digo que finjo que trabalho. Acho que o senhor entende o que estou dizendo, não entende, senhor?

- Olha aqui, seu filho da puta – disse o açougueiro depois de espremer o pescoço de Jaime na parede – quem faz as perguntas aqui sou eu! E por acaso eu tenho cara de médico de cabeça? O mundo caindo lá fora! Você não lê jornal, não vê televisão?

- Não, senhor. Eu não leio o jornal nem vejo televisão – Jaime retorquiu, ainda em transe.

- Você não faz nada! O que você faz, porra!? – começou a gritar o homem que havia comido fígado ainda quente, andando em círculos com os braços para o alto, do outro lado da sala.

Então o açougueiro se recompôs, ajeitou o terno, estufado com os movimentos bruscos, limpou a testa com um lenço, depois o buço vagarosamente, então disse, depois de morder a boca, tentando permanecer calmo:

- Veja bem, meu amigo. Veja se você compreende. O mundo está no fim. Os gases estão acabando e uma bomba está sendo feita com o pouco que ainda resta deles. Essa bomba vai mandar tudo isso aqui pelos ares. Alguns vão se safar, outros vão se foder. A lógica do negócio continua a mesma. Portanto, nosso trabalho é escolher aqueles que vão para o paraíso e aqueles que vão precisar rezar por isso. Um trabalho nobre, não acha?

- Sinceramente não, senhor.

- Ah, então você acha que é um trabalho de merda?

- Não quis dizer exatamente isso, senhor. Mas, provavelmente, o senhor não vai conseguir escolher os humanos que realmente são imprescindíveis para a continuidade da espécie. Então, o que provavelmente vai acontecer é que os que se safarem vão morrer dizimados de uma maneira ainda mais cruel e violenta do que os dizimados imprescindíveis. Provavelmente roendo uns as canelas dos outros. E o senhor, em boa parte, será o culpado. Por isso não acho que seja um trabalho nobre.

- Olha aqui, seu merda! – e o comedor de fígado humano veio correndo e levantou sua botina lá no alto, voltando com tudo de bico num dos joelhos de Jaime, que caiu imediatamente. Depois o açougueiro deu três chutes no seu rosto fazendo um rastro de sangue fugir pela parede encardida da sala.

Deram com as algemas nos pulsos do homem ainda fora de órbita, o arrastaram dali. Jogaram Jaime dentro de um caminhão do serviço sanitário estadual. Pessoas corriam e gritavam e caíam pelo chão com pavor, esticando os braços, fechando os punhos e abandonando seus membros vitais soltos pelo caminho. De perto a cena parecia pior, como qualquer coisa é pior quando vista de perto. O fim do mundo acabava num antigo depósito de sapatos, transformado num enorme forno a gás, para onde seguiam os caminhões adaptados do serviço sanitário estadual, com os feijões estragados. De cima do depósito bamboleava uma fumaça preta com cheiro de churrasco passado e de nenhum lugar, num raio de mil quilômetros, podia-se ouvir Tom Waits cantar.

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