Ainda é cedo para continuar >> Leonardo Marona
"os subterrâneos"
estamos nas pequenas dobraduras
os reféns da mobilidade do amor.
você não nos conhece, passa reto,
não entende o nosso riso ambíguo
que nos torna totens apodrecidos.
o mundo urge, não damos conta.
vemos um lugar, estamos noutro.
sem ponderar seguimos vendados,
ponta de pé à beira do cadafalso.
colhemos restos e dormimos bem.
vocês bem tentaram a Gioconda
os embriões de cera e a esmola.
vocês fizeram só o que podiam
nos deram a chance de odiá-los.
mas não podemos, não há força.
Dos pequenos erros, cometidos por vontades que parecem alheias. É disso que se faz o homem. Da porta entreaberta que permaneceu longe do pulo. De cada frase equivocada e sem saber onde acabar. São erros às vezes cometidos por sabedoria. Toda a sabedoria é estúpida, dado que não se sabe o fundamental: por que continuar? Ou, como diria o ajudante de guarda-livros, "por que exprimir?"
Deixei de me perguntar isso todo dia, deixo a barba crescer livre e raspo mensalmente. Os tiros na têmpora já não me incomodam, mas a falta de assunto é o cão. Sei que me levanto e, por algum motivo ainda desconhecido, volto a me deitar para levantar outra vez e, de fato, ninguém nunca nos explicou os motivos dessa prosopopéia.
"As coisas simplesmente acontecem" é o mais longe que chegamos até hoje. Volta e meia aparecem uns homens de bigode, sisudos, com cara de poucos amigos, sentados em montes e derrubando barracas de feira. Os novos profetas, os cidadãos póstumos. Pois estes senhores de mão no queixo e piteira inauguraram a era da autopromoção, falando em si próprios como se fossem uma novela. "A seguir (daqui a séculos) cenas do próximo capítulo". E mesmo assim eles foram ferrenhos, produziram, deram nome a praças e lascas de pedra, deixaram belos textos sobre verdades brutais, morreram de sífilis ou de miolo mole – e as coisas simplesmente continuaram acontecendo.
O trajeto do espinho à murada de gelo. É assim que sentimos a vida constantemente – isso vale para os que ainda conseguem sentir alguma coisa de próprio, por mais descontrolado e impulsivo que seja. Vagamos pelo mundo e de vez em quando nos damos as mãos. Nosso erro é jurar amor de mãos dadas. Todos os dias amamos e atropelamos existências, matamos impunemente, e alguns ainda fazem a sesta e o sinal da cruz. Somos biografias sem fatos. O gatilho do afeto é tão rápido quanto o veneno das horas. Bernardo Soares tinha razão.
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