O CONTADOR DE HISTÓRIAS >> Eduardo Loureiro Jr.

A frase — que me surpreendeu — foi dita por uma colega de trabalho após eu relatar uns acontecimentos da festa de aniversário da noite anterior...
O poeta, também colega de trabalho, diante de uma prova de múltipla escolha, compôs: A ou B? C ou não C? E se for D?
Todos riram, baia após baia do ministério. Foi quando a colega disse:
— Você é um contador de histórias!
E eu fiquei pensando por que ela disse aquilo se eu fui uma criança tão tímida e se meu falar sempre me soou tão desinteressante.
Talvez a colega tenha dito aquilo porque eu fiz uma pequena introdução sobre o momento da festa em que o poeta recitara seus versos de brincadeira. Ou talvez porque eu arrematei o relato dizendo: "Foi D, e o poeta se fodeu."
— Você é um contador de histórias!
A frase ficou girando no meu juízo e me lembrei de meu pai, esse sim um contador de histórias.
Ontem, quando me recebeu em sua casa para o final de semana do dia dos Pais, ele não deixou que eu dormisse sem ouvir um soneto de Zé Lopes, um primo já falecido:
É meia-noite, na cidade triste,
Ouve-se, apenas, o rumor do vento.
Todos descansam, só meu pensamento,
Numa tolice vã em ti persiste!
Isso acontece, desde que partiste,
Esquecendo, talvez, o juramento
Que dizias eterno e, num momento,
Talvez só por pirraça, o destruíste!
Tu voltarás, mulher, tenho certeza,
Humilhada p'ra mim e com certeza,
A ti estenderei a minha mão.
Terás de tudo, mulher, todo conforto,
só não terás amor, porque meu peito é morto,
E nele já não pulsa mais o coração.
E meu pai concluiu: "Recitei isso para sua tia, e ela me disse 'Esse poema é bonito, não é, Dó? Mas sabe de uma coisa: eu não entendi nada'."
Se foi ou se não foi assim, não se pode dizer. Meu pai tem uma tendência para a ficção mesmo quando está apenas relatando fatos. E eu me surpreendi, naquele dia ainda, com o súbito e-mail do colega-poeta a todos da repartição. A mensagem eletrônica incluía uma versão do poema diferente daquela que eu havia contado. A versão, que na verdade era o original — vindo do próprio poeta —, pareceu-me inferior à minha invencionice. Se — a um contador de histórias — é necessária a memória para fazer mágica sem consultar o manual, tampouco pode lhe faltar a invenção para que a mesma história, tantas vezes repetida, não desenvolva o gosto amargo da monotonia. Acrescenta-se um pouco aqui, retira-se um pouco acolá... a depender da audiência. Muda-se uma palavra, altera-se um personagem... para que o ouvinte compreenda melhor — ou mesmo para desafiar-lhe a compreensão. Levar até o outro não a coisa em si mesma — coisa —, mas a coisa em si mesmo, a coisa provocada pela coisa quando nós mesmos a recebemos pela primeira vez.
— Você é um contador de histórias!

*
Meu pai acorda de madrugada para fumar, talvez lembrando dos versos do mesmo Zé Lopes:
Este cigarro me mata, é um tormento,
Não fumo mais, por Deus, então dizia,
E assim que terminava o juramento,
Outro cigarro, distraído, eu acendia.
Fumava até o meio, e o juramento,
Como um credor atroz, me aparecia.
E eu jurava, em meio do tormento,
Que minha boca jamais cigarro via.
Fumei e hoje estou velhinho,
E da vida em meio ao torvelinho,
De fumar ainda não me arrependi.
Porque o cigarro é meu melhor amigo,
Se estou triste ou alegre, está comigo,
É o menor, e o mais fiel, de todos que já vi.
Eu — que não fumo — acordei de madrugada, ainda no escuro, com ânsia do vício de tragar palavras. E a mim, que há muito tempo não madrugo, surpreendeu o colorido da alvorada.
O amanhecer é um pôr-do-sol às avessas — penso. Ou seria — despenso — justamente o contrário? É meu pai que nasce na minha memória? Ou sou eu que me ponho em sua repetida história? Se penso, ou se despenso, o amanhecer permanece belo. Mesmo que dele eu não entenda nada.
Comentários
Que linda sua crônica. Sabe o quê? Nem sei mais o que comentar...
Quanto encanto se espalha quando se sabe brincar com as palavras.
Inté
Marisa, você me deixou criativamente pensativo com essa história de repertório... :)