OS TRÊS DO 16 >> Eduardo Loureiro Jr.
Eu estava no que hoje se chama puberdade, mas que na época era só meninice mesmo. Entre os super-heróis, eu não queria a força do Super-Homem, contentava-me em possuir a discrição do Homem Invisível... e naquele quarto em que ela estava, eu entrava descalço, com todo o cuidado para não produzir nenhum som que me denunciasse. Ela estava na rede, olhos fechados. Eu deitava na cama e ficava observando. O tempo parava, preso no silêncio e no encantamento. Ela abria os olhos, mas não me via; colocava os óculos — inúteis — e continuava sem me ver. Ainda sem se levantar da rede, e mesmo sem se virar, ela estendia a mão direita para a mala que ficava ao lado — coisas de hóspede que estava só de passagem. Da mala ela retirava um pente, marrom, daqueles que também poderia servir como prendedor de cabelo — não havia o que retocar em seus cabelos lindos, lisos, inelinháveis. Eu aproveitava minha invisibilidade para assistir àquele ritual de delicadeza e graça. Guardado o pente, ela passava lentamente suas mãos finas sobre o vestido para se certificar de que não estava amassado — ela estava sempre pronta, sempre arrumada. Para finalizar o ritual, ela tomava em suas mãos uma lata de alumínio e a balançava. Sim, havia algo dentro, e isso a deixava tranqüila. Logo que alguém chegasse, ela poderia oferecer biscoitos de maisena. Se ela soubesse que eu estava ali, me ofereceria quantos eu quisesse. Mas ela não podia me ver. Ela era cega.
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Da primeira vez que eu a vi, ela estava sentada no degrau do meio de uma escada que ficava como que suspensa do lado de fora da parede. No topo daquele prédio de dois andares, havia uma pequena torre. A escada era azul, e ela parecia uma princesa inteligente e ousada o suficiente para escapar da torre em que fora presa por um monstro qualquer e sentar-se no degrau do meio da escada. Fomos apresentados dias depois: seu nome estava cheio de canções que eu não era capaz de ouvir na época. Eu era tímido de ouvidos e de tudo mais — incapaz de chegar até ela, iniciar uma conversa e abrir espaço para aquele começo de encantamento. Eu estudava na cela nº 9 do pátio interno. Eu lia Marcel Proust e sublinhava as longas lindas linhas que ele havia escrito há tanto tempo. A cela nº 9 era de porta e quase-janela: combogós. Ela passou frente à porta e, naquele pedacinho de segundo, as longas lindas linhas curvas dela me fizeram tirar os olhos do livro. Mesmo sem parar, ela também percebeu que eu estava ali e, quando passou em frente aos combogós, virou o rosto em minha direção e sorriu — meu mundo se abrindo como se fosse uma marionete dos lábios dela. Dias depois, eu, que só escrevia poemas curtos, entreguei-lhe seis páginas — O Sorriso —, o maior poema que escrevi até hoje. Meses, cartões, encontros depois, nós cantávamos Cajuína. Nós "éramos olharmo-nos intacta retina" e, quando a letra da música terminou, nós começamos a improvisar palavras de nosso próprio sentimento. E ainda hoje é difícil acreditar que nós nunca tenhamos nos dado o final feliz de um beijo.
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Não costumo fazer canções para desconhecidos, então é de supor que já nos conhecíamos. mesmo que eu não tivesse memória de seu rosto. Ali, na penumbra — seu corpo deitado em sono e sua mente ocupada em sonhos — seus braços e pernas se mexiam. Um movimento por vezes brusco, feito luta; outras vezes, fluido feito dança. Luz em cada gesto. No meu olho, uma lágrima deslizava: frio na barriga de topo de tobogã. Emoção colorida e invisível: infravermelha, ultravioleta; eu vendo só o arco-íris que levava até, e que trazia: a canção, esse pote de ouro em pó e luz. E na letra da canção a que eu ia, e que me vinha, eu pedia que um daqueles gestos de sono e sonho tocasse a canção: "pega com a mão esse tesouro em minha voz".
Clique no play (>>) para ouvir a canção.
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Minha bisavó, meu grande amor platônico e meu sobrinho nasceram num dia 16 de março. Minha bisavó já fechou os olhos pela última vez. Meu amor platônico deixou-se aprisionar novamente na torre... e ainda não saiu. Meu sobrinho, em seu primeiro aniversário, sorri e enfia os dedos em minha boca.
Comentários
Linda a música, linda a sua história, linda a sensibilidade que você desperta em cada pessoa que aqui passa!
Obrigada.
Que lindo olhar você tem!
Beijo,
O primeiro texto dos tr�s do 16.me tocou tanto que visualizei os outros dois em preto e branco.
Aprendi com Vo Encarnadinha que sexta-feira é o dia da alegria, mas se ela ainda vivesse concordaria comigo que a segunda-feira é também dia melhor: dia de ler a cronica do domingo :)
Como sempre muito linda! Fiquei com saudades do biscoito de maizena e feliz de lembrar que temos hoje o Luis, muito fofo, para comemorarmos o dia 16 de março.
Bj,
Tia Monca
Inezinha, "o seu olhar melhora o meu". :)
Dilma, como você é escritora, deve ter se sentido mais atraida pelo primeiro trecho, que era mais especificamente literário. Eu, de minha parte, gosto muito de preto-e-branco. :)
Tia, a alegria está tomando conta da semana: sexta para a Vó Encarnadinha, segunda para você e domingo para mim, que escrevo. :) Vamos deixar a alegria dominar.
Que poesia solta nessa prosa!
E parecia música, antes mesmo de eu apertar o play. E para mim ela tinha um ritmo bom; tinha até melodia, antes do play. E no fundo branco da homepage eu alcancei um quê de paraíso. Casei-me com o entendimento lá, obviamente, com o consentimento do imaginário.
E certamente minha compreensão da crônica seja cronicamente diferente da sua, mas quer saber? Não parei por um segundo... Descarrilei meus pensamentos e li mais um belo texto de sua autoria.
Play. Stop. Bye.
love
A segunda dos 03 do 16 sugiro, mais uma vez, que você transforme em um belo livro pra eu presentear e ler pros meus e pra outros. O amor e a inspiração da terceira dos 03 do 16 já vi e ouvi transformada em pessoa e em canção encantadores.
Beijo,
Hebinha