GIRÂNDOLA >> Carla Dias >>

Não desisti das estradas a perder de vista, dos horizontes açoitados por pores do sol. Continuo a economizar tempo para gastar essas fichas em outros lugares; naquelas lonjuras nas quais uns e outros jamais ousariam estar. Às vezes, essas lonjuras estão no mapa e me levam a outros estados, outros países; levam-me aos impessoais quartos de hotéis, onde remôo desejo de voltar para casa, mas sem saber ao certo se meu destino de volta é o meu lugar... O meu lar. Outras vezes, elas fazem parte da geografia da minha imaginação.
É realmente curioso como o tempo nos aborda. Diferentemente do que pregam os entendidos, os filósofos, cientistas, pais, políticos; é preciso viver o tempo para compreender que jamais saberemos como ele passará para cada um de nós. No fim das contas, estamos sempre à mercê dos mistérios.
Notei, ainda há pouco, que não engravidei de filhos; as crianças não correm pela sala, não me endoidecem com tombos ou encantam com as brincadeiras. Não há gargalhadas delas aqui, nem seu choro que sempre é sofrido, porque dói desejar colo e não recebê-lo a contento da necessidade. Não há herdeiros para as histórias preferidas, ou para passar adiante a tradição da minha infância: bolinhos e chá em dia de chuva, os pés sendo massageados pelas mãos que oferecem conforto; as meias que foram esquentadas a ferro para enganar o inverno.
Não engravidei de filhos, mas sempre me inspirou a vida essa criação. Minha mãe me ensinou a ser filha; minhas irmãs e irmão me ensinaram a ser irmã; meus sobrinhos me ensinaram a ser mãe e, para as travessuras e chamegos, tia. E eu sempre disposta a aprender, como se mais do que elaborar a própria biografia, eu estivesse preenchendo o vazio com o qual todos nós nascemos.
Então, eu engravidei de tantas possibilidades, restando-me dar vida à arte para ser quem sou e em quem me transformo, constantemente; torcendo para que eu faça sentido a alguém mais que não somente – e fragilmente - a mim mesma. Porque a arte me ensinou a ser humana, e minha humanidade gosta de companhia, apesar de também apreciar algumas facetas da solidão.
Volto ao vazio... Preenchê-lo requer um jeito que nem sei se realmente tenho. Nesse balaio, incluo todos os que eu aprendi a amar. E ao prestar atenção no que me levou a esses apaixonamentos... As sutilezas: gestos, palavras soltas, um olhar, a presença na hora certa, mas sem consciência dessa importância. Minutos de silêncio a contemplar ruas e multidões; e a versão breve da imensidão dos desertos. Também lá estão as decepções e as mágoas, delineando fragilidades na minha existência. E a tristeza: a morte de um amigo, dos irmãos; o despreparo ao lidar com o desafeto (há como se preparar para recebê-lo?)... A distância, apesar de estar ao lado. Quando é preciso ser tão somente o observador das fatalidades: o impotente.
Falo sobre mim, mas e você? O que o cerca ostensivamente e difere de quem você é neste agora? E o que, apesar de disfarçar tão bem, você deseja conhecer melhor? O que há de belo e não está ao seu alcance, mas ainda assim é importante, porque o faz pensar em chegar a algum lugar, justo quando dizem que você não sabe mais dar passos adiante?
Confesso que me interesso pelas prisões: a moça que se permite amargurar porque não cabe num padrão de beleza, então nem um ou outro se dedica a conhecer o belo que ela traz dentro de si. O moço que revira mágoa por não ser capaz de cuidar de si mesmo, trabalhar num emprego decente, conquistar seu espaço. A criança de olhar apagado, adulto, que já sabe declamar necessidades de rua. As prisões existem e cada um de nós escolhe em qual delas passará algum tempo. E o segredo está em nos apossarmos da liberdade, antes que as prisões nos sufoquem. E nos definam.
Exorcismos são necessários.
Imagem: www.freedigitalphotos.net
Comentários
Você tem um jeito todo especial de mexer com emoções, até então trancafiadas.
Ler você faz com que eu encare o meu espelho pessoal de frente.
Sua cronica realmente foi tocante(ps: eu nao sou emotiva - mas essa foi um tapa na cara.)
Realmente te adimiro MUITO.
beijos e
bons ventos do outro lado do mundo para ti.
love
Anny J
Drikota... Você é muito gente boa. Ao se emocionar com o que escrevo, só me faz pensar que a escrita vale mais, muito mais do que sempre imaginei.
Marisa... Acho que escrever me ajuda a também encarar o meu espelho pessoal de frente. Que bom que há essa afinidade entre nós, não?
João... Os segredos... Acho que o grande barato em tê-los é a idéia de que, dia desses, encontraremos com quem dividi-los.
Anny... Obrigada por me ler mais uma vez. Saiba que sou admiradora da sua arte e ela já me inspirou a escrever. Saudades de tê-la em terras brasileiras para jogar conversa fora, ler runas e repensar importâncias da vida.
Tâo difícil se apossar da liberdade depois de, sem querer, estarmos aprisionados num círculo vicioso que soa impossível de romper! Eu às vezes luto com isso: recuperar essa liberdade perdida, esquecida num canto, 'arruinada' por tantas obrigações impostas pelas nossas escolhas - aquelas, que a gente não sabia bem que desaguava numa enorme contradição...
Liberdade, às vezes, parece apenas palavra de dicionário, tão distante do alcance se encontra... Beijo enorme. Texto muito reflexivo - como sempre. :)
Parabéns pela crônicas, muito inspiradas e inspiradoras!
Saúde, Sucesso e Sorrisos!