EXCESSO E FALTA >> Eduardo Loureiro Jr.

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Sei que deveria estar escrevendo sobre Páscoa e ressurreição, mas às vezes — muitas vezes — a vida ressurge quando e de onde menos se espera.

Esta é uma crônica sobre amor e trabalho — assuntos que interessam a qualquer leitor sério. Como deve haver algum leitor não muito sério do outro lado da tela, devo deixar claro que é também uma crônica sobre sexo e dinheiro.

Aviso, entretanto, aos apressadinhos, aos que sofrem de leiturização precoce, que essa crônica tem suas preliminares, que há romance, sedução, que eu não vou direto ao ponto G do leitor. Há que se ralar para obter o justo salário ou arriscar para colher o rendimento pela leitura desta crônica; há que se labutar.

*

Todos nós temos nossos redutos de fantasia, áreas da vida que experimentamos apenas na imaginação. Vivê-las de verdade, ao vivo, em carne e cores, parece impossível ou pelo menos pouco provável. Então criamos nosso próprio filminho interior em que tudo dá certo, em que milagres acontecem. Em algumas de minhas fantasias, eu me vejo sendo entrevistado. Deve haver em mim qualquer desejo de ter minhas opiniões ouvidas, de ser consultado sobre assuntos do maior interesse e relevância como, por exemplo, a possibilidade de extração de cola da raiz dos pentelhos. (Calma, sério e pudico leitor, eu tenho que manter a atenção do leitor não muito sério, nem que seja às custas do seu pudor e — acredite — também do meu.)

Assunto sobre o qual eu gostaria mesmo de ser entrevistado é o do desemprego. Há muitas pessoas desempregadas e nunca me perguntaram nada a respeito, logo eu, que tenho uma explicação muito simples para a situação e, como conseqüência inevitável, uma solução incrivelmente fácil...

Ninguém discordaria se alguém dissesse que o fato de haver ricos e pobres deve-se a uma má distribuição de renda. Se alguns têm pouco, é porque outros têm muito, muitíssimo; e quanto mais têm aqueles que têm muito, menos têm aqueles que têm pouco. É simples, é óbvio, ninguém discorda. Com o desemprego dá-se o mesmo. Se alguns não têm emprego, é porque outros o têm em excesso. Conheço gente que tem dois ou até três empregos de carteira assinada, sem contar os bicos. Qualquer médico que se preza tem pelo menos dois empregos, sem contar o consultório. Professor então... só não dá aula de madrugada porque ainda não inventaram plantão educacional, ensino 24 horas, aprendizagem night through.

Outra fonte de constante reclamação é a falta de homem — ou de mulher, dependendo daquele que reclama. Também com as relações, afetivas ou sexuais, dá-se o mesmo. Se tem gente sem, é porque tem gente com o seu e com o que poderia ser do outro. Sinceramente, ou meu leitor está chupando o dedo (entre uma reclamadinha e outra) ou então está administrando um latifúndio de amores. Ah, tudo bem, o meu leitor sério não se encaixa: está feliz com seu parceiro e com ele apenas; não reclama, não esbanja, só agradece a Deus. Ok, existe classe média em tudo. Mas o leitor — mesmo o sério — há de conhecer alguém, um amigo, ou pelo menos um inimigo, que está na penúria afetiva ou na fartura sexual.

A solução para a questão da renda parece simples: distribuição. Que o que tem muito divida o que tem com aqueles que têm pouco. Qualquer pessoa que não seja empresário ou milionário defende isso. A convicção da maioria faz empresários e milionários parecerem maus porque só pensam em lucrar e acumular, nunca em baratear ou dividir. O mesmo poderia valer para os empregos: quem tem mais de um poderia muito bem largar mão de um empregozinho em prol de um irmão desempregado. Mas aqui os que têm emprego são maioria, são os empregados/milionários do trabalho assalariado e não vão largar do osso, afinal precisam sobreviver, têm necessidades que precisam ser atendidas, têm filhos para criar, pais idosos para ajudar... A minoria desempregada vai ter mesmo que rebolar pra dar conta do pão de cada dia, porque os multi-empregados não vão baixar a guarda nem que morram de estresse.

Para os relacionamentos, não valeria a mesma lógica? Se o sujeito que tem três namoradas — uma fixa e duas de sobressalência —, liberasse as de sobressalência, isso não aumentaria as chances daquele tímido que nunca arranja ninguém. E se a esposa respeitável, dona-de-casa e mulher trabalhadora (quem sabe até com dois empregos), que tem um amante por luxo ou por necessidade de ser amada mesmo, largasse mão do amante, ou pelo menos do marido, isso não ajudaria a desencalhar alguma senhora que está beirando a meia-idade. Sim, eu sei que as mulheres de meia-idade não querem mais marido — me engana que eu gosto, mas, mesmo no meu engano, não há como deixar de ver que as que não querem marido são justamente as que estão acumulando amantes; ou seja, a mulher que não arranja um homem acaba resolvendo arranjar vários homens, piorando ainda mais a situação das pobres mulheres que se contentariam com um homenzinho só.

Até aqui, já devo ter ofendido uma meia dúzia de leitores sérios e um outro tanto de leitores não muito sérios. (Deve ser coisa dessa lua cheia.) E a forma que tenho de me desculpar é dizer que não acredito nessa distribuição assim tão pragmática do excesso para os que têm falta. Porque, afinal, onde está o ponto em que acaba a falta e começa o excesso? Voltemos à economia... A renda per capita do brasileiro é algo em torno de 12.000 reais anuais, ou 1.000 reais por mês. Isso é o que cada brasileiro ganharia se houvesse uma perfeita distribuição de renda, na base do "nem excesso nem falta", tudo igual para todos. Será que eu tenho algum leitor, sério ou não muito sério, que gosta da possibilidade de ganhar 1.000 reais por mês? Mesmo quem ganha um salário mínimo tem pretensões maiores. Então vai ser difícil distribuir uma renda que, além de tornar insatisfeito quem já ganha mais do isso, ainda não trará satisfação àqueles que ganham menos. Vamos... admitam, meus queridos leitores — pelo menos os de classe média — que com milzinho por mês não dá.

E se não dá para a renda, não dará para o emprego e, muito menos, para as relações. Contentar-se apenas com um trabalho e com um amor vai ser difícil para um bocado de gente. E então, qual a solução? Os leitores atentos, o sério e o não muito sério, agora estão juntos, me fitando com olhos de cobrança: "Você prometeu uma solução incrivelmente fácil. Onde está ela?" E eu só respiro aliviado porque sou escritor — e de ficção — mesmo que o leitor acredite piamente em tudo o que escrevo aos domingos. Como escritor, posso inventar uma solução incrivelmente fácil; e o leitor, se for crédulo, pode aceitar...

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Nem todo mundo usufrui de seus bens e de seus amores o tempo todo. Nem o milionário anda de jet ski vinte e quatro horas por dia nem o conquistador beija o dia inteiro. Em boa parte do tempo, nossas riquezas ficam paradas. Se tivéssemos a delicadeza não de dar tudo o que nos sobra, mas de pelo menos emprestar o que não estamos precisando naquele exato momento, multiplicaríamos renda e amores. Ao faminto, não faltaria o resto-de-ontem do rico, guardado na geladeira para o dia seguinte, que ficou para o dia seguinte, e para o seguinte, até que teve que ser jogado na lixeira. E aos tímidos e encalhados nunca faltariam o beijo e o abraço caridosos daquele ou daquela que tem namorado, mas que, naquele justo momento, está disponível.

Simples, não? Incrivelmente fácil.

Foi bom pra você, meu sério ou não tão sério, leitor?

Comentários

Anônimo disse…
"Ao faminto, não faltaria o resto-de-ontem do rico, guardado na geladeira para o dia seguinte, que ficou para o dia seguinte, e para o seguinte, até que teve que ser jogado na lixeira. E aos tímidos e encalhados nunca faltariam o beijo e o abraço caridosos daquele ou daquela que tem namorado, mas que, naquele justo momento, está disponível."
E você não queria falar de Páscoa e dessas coisas similares típicas da data? Incrível! Até quando você quer fugir do tema, consegue deixar sua sutil e sábia mensagem.
Nem precisa de entrevista...
É, Marisa, pelo visto para a boa leitora... meio ovo de chocolate basta. :)
Anônimo disse…
Edo,

Em tempo de Páscoa, vc falou de doar, repartir, dividir.Isso pode ser para muitos "espírito cristão", eu chamo "arte de viver". Arte de viver engloba as quatro operações: Dividir, somar, sem subtrair para multiplicar.
Oi, Dil! Deve ser muito boa essa sua vida de artista matemática. :) Nessa escola, ainda sou aprendia: mas chego lá. :)
Carla Dias disse…
Eduardo,
Crônica interessante e intrigante...
Somos educados para ganhar e manter, não? Ainda bem que nem todos nós aprendemos essa lição; que no meio do caminho desvirtuamos e acabamos menos paqueradores do nosso próprio umbigo... Isso mesmo! Passamos a paquerar os umbigos alheios, também! E a dividir salgadinho, sofá preferido pra assistir televisão, roupas, discos, livros; chegamos mesmo a doar: tempo, afeto, consideração, casa, comida, companhia, conta bancária, nome...
Podemos ser bem interessantes quando descolamos os olhos de nós e passamos a olhar para os outros, não?
Carla>, me fez lembrar do filme 10.000 b.C., em que há a seguinte citação: "Men draw a circle around themselves and vow to protect and care for all who fall within it. For some men, that circle includes their "woman" and children. For others, their extended family. For great men -- leaders like D'Leh -- it includes many, many people. A man must decide who falls in his circle of influence." (Os homens traçam um círculo ao redor de si mesmos e prometem proteger e tomar conta de todos que estão dentro. Para alguns homens, esse círculo inclui sua mulher e filhos. Para outros, sua família ampliada. Para grandes homens — líderes como D'Leh — o círculo inclui muitas e muitas pessoas. Um homem deve decidir quem pertence ao seu círculo de influência."

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