"Mulher-Lobinho" >> Leonardo Marona
1. Morte e Danton
No final da peça Ele não sabia quem era Danton. Saiu um tanto confuso, pensando: “uma hora Danton é covarde... Outra hora é um bêbado... Depois vira uma puta! Outras três putas: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Então, de repente, Danton é um sujeito que diz: ‘hoje estive sentado na pedra do Arpoador fumando um cigarro. Fiquei ali olhando o mar... Pensei que eu não era nem uma gota daquele mar... E quantas gotas tem o mar! E eu me acho tão importante, tão importante... vocês não imaginam o quanto... Nossa que papo ridículo’”.
E esse foi o fim da morte de Danton. O começo do movimento da classe artística pelas veias venenosas do teatro do Sesc, Copacabana. Mulheres com muita maquiagem e pouca cor, mais a intensidade dos confusos e nenhum parafuso no lugar certo, o que, parece, sempre serviu às artes e aos psiquiatras para passarem as férias em Positano, bebendo bebidas fumacentas e ouvindo calipso. Mulheres para você se casar com elas e morrer dignamente, diariamente: embriagado, sentado, tendo tido (ou sonhado com) um ataque cardíaco na sua sacada de frente para o mar – numa mão um bilhete de despedida, “simplesmente não agüentei mais... boa sorte” – no apartamento, centro da sala, mais nenhum móvel, apenas uma muda de roupa – na outra mão uma rosa partida – sangue de festim que escorre pelo tapete de corda trançada e isso era tudo no que Ele conseguia pensar olhando aqueles rostos sorridentes que falavam sem parar de inventar emoções para um domingo meio ensabadado, enquanto subia as escadas do subsolo para o submundo que, apesar de sub, está ao nível do mar.
2. Noite de sexta-feira
A rua parecia um cenário mal desmontado. As pessoas não andavam, pareciam escorregar pelas calçadas, se escondiam de alguma coisa. Havia homens vendendo lingüiças fritas e corações de galinha feitos na brasa de uma lata de óleo. Não havia sorrisos nos rostos de mais ninguém.
Ele e Ela saíram do teatro para a rua e viram que o mundo de verdade era preto e branco, não menos bonito por isso, nem menos complexo, apenas tinha menos cores, as outras fomos nós que inventamos, e parece que até hoje insistimos na mesma invenção.
Sentaram-se para comer num restaurante mexicano, com uma “comida leve”, segundo Ela, o que a Ele pareceu uma contradição em termos. Ela pediu tacos com carne de sol e tomates picados embebidos no azeite. Ele pediu uma cerveja já que uma salvação sairia caro demais. Uma conhecida estava na mesa ao lado e acabaram se juntando, os três. A tal conhecida não tinha nada dentro dos olhos. Nem tristeza nem alegria. Nem uma pista. Seus ombros formavam um cabide torto numa armação parda de ossos. Bufava sem parar e acendia um cigarro no outro. Um sujeito tocava Djavan num violão e uma platéia apática devorava seus tacos e suas vidas enquanto sorria amarelo e olhava para baixo, ou para muitos lugares, sem enxergar nenhum.
- Parece que arrancaram o saco desse cara! – disse Ele irritado, batendo a lata de cerveja na mesa e esticando o pescoço, referindo-se ao sujeito que tocava Djavan.
- Estou exausta... Vou pra casa – emendou a conhecida entediada.
- Não quer ir dançar conosco? – disse Ela. – Nós vamos no Bukowski.
- O que é isso? – disse a conhecida, como se de fato não fizesse nenhuma questão de saber.
- Uma bodega que toca rock n’ roll – disse Ela.
Ele ficou pensando como era triste um sujeito que, depois de escrever alguns livros honestos e morrer dignamente de leucemia, se torna símbolo de tudo aquilo que mais desprezou em vida.
- Não gosto de bodegas – disse a conhecida.
- Você precisa de uma piroca, eu acho – disse Ele batendo a lata na mesa, ao som de “Flor de Liz”.
- E você precisa de uns tapas – disse a conhecida, jogando uns trocados na mesa e erguendo-se bruscamente, de modo que tropeçou e caiu de joelhos no chão.
Ela tentou levantar a tal conhecida, mas levou um tapa na cara. “Ei!”, gritou, “o que eu te fiz, cacete?!”. A conhecida apenas olhou para os lados, ficou parada um tempo, depois saiu assustada, na mesma hora em que o sujeito que assassinava Djavan fez uma pausa para um gargarejo. Eles riram e pagaram o que faltava da conta. “Vamos fazer uma pequena pausa agora”, disse o sujeito com o violão.
3. Conhaque
Ela tinha na bolsa um cigarro que ainda era ilegal, apesar de todo mundo usar e movimentar a maior parte da economia mundial, que também é ilegal assim como o cigarro, apesar de todo mundo usar também para movimentar suas contas poderosas nas Ilhas Caiman e suas instituições filantrópicas no Nepal, que também são ilegais, pura fachada, e poderíamos ficar a noite toda nessa lengalenga até chegar a conclusão de que o ser humano era ilegal e, por conseqüência, também eram as suas leis.
Eles decidiram que fumariam metade do cigarro no caminho e outra metade dentro do bar.
Uma e meia da manhã. Os olhos não permitiam que o mundo fosse bonito. Caixas empilhadas nas ruas. Mendigos se coçando debaixo de trapos. Grunhidos do inferno ecoavam dos cantos mais escuros. O barulho distante mas constante dos ratos mastigando as sobras do mundo. Sacos de lixo virados, empilhados como os mortos de uma guerra perdida. Gatos que jamais perdem a classe, mesmo famintos. Fiapos de macarrão. Líquidos escuros, pastosos, pessoas espalhadas pelo chão cheirando cola. Ninguém tem nada a oferecer. Ninguém se olha. Olham por cima dos ombros, para cima. Todos precisam de tempo para amar, mas ninguém sabe como procurar aquilo que não conhece. E o tempo exige amor demais para que você aprecie seu efeito físico.
Pararam na porta de um inferninho chamado “Bar Virgem Santa”. “Uma virgem para foder os pecadores”, Ele pensou, mas disse: “que merda, o bar fechou”. De fato, a grade estava puxada até em cima. Sobravam para os olhos apenas uma fresta de luz, por onde se via um grande tapete de carne arenosa, pendurado por dois ganchos no teto, e uma fileira de garrafas de vidro cheias de um líquido transparente, em cujo rótulo lia-se: “licor de alcaçuz”, sobre uma prateleira remendada com esparadrapos.
Vozes falavam em algum dialeto incompreensível dentro do bar. Ela se aproximou da grade e deu três pancadas no aço com a mão. As vozes pararam lá dentro.
- Vocês ainda podem me vender um conhaque? – disse Ela.
- Quem é você? – perguntou uma voz.
- Marisa – disse Ela. – Duas doses de Domecq, por gentileza – e estendeu uma nota de cinco reais na ponta dos pés.
- É três e cinqüenta a dose, Danuza – retorquiu a voz de dentro do bar.
Risadinhas. Ela entregou mais dois reais pela fresta, e disse:
- Marisa...
Duas mãos passaram dois copos de plástico cheios até a metade com um líquido cor de ferrugem, que também calhava de ter gosto de ferrugem e cheirava a álcool de cozinha. Eles brindaram antes de beber, mas isso não melhorou o gosto do líquido.
Na frente do Bar Bukowski, um homem muito magro, já bem calvo, muito curvado e amarelo, entrava no seu jipe Pajero acompanhado de uma loira imensa, com uns três membros originais no corpo.
- Pajero é carro de quem tem pau pequeno – Ele disse, e deu uma golada, pelo que precisou enrugar o cenho.
4. Intimidade
Ele falava para Ela sobre a tal conhecida entediada que estava com Eles no mexicano.
- Isso é muito estranho. Num dia você chupa o cu da mulher. No outro dia ela te trata cheia de formalidade... O que é a intimidade?
- É isso...
- Isso o quê?
- Você dizer esses absurdos e eu ter que ouvir. Isso é a intimidade.
Brindaram. Como os copos eram de plástico, ao se chocarem fizeram um barulho semelhante ao de uma barata sendo esmagada no asfalto, e um deles rachou.
5. Crianças
Na porta do bar havia dois seguranças, ambos massas exageradas e quadradas, um de bigode e sem cabelo, outro de cabelo e sem bigode, os dois parecidos com uma dupla de comediantes liquidados, com os pés escorados, cada um de um lado da porta, as mãos enfiadas nos bolsos. Ele e Ela observavam um pouco afastados, ouvindo as músicas que vinham lá de dentro do bar, nada muito prometedor: Franz Ferdinand, Blur, Cure, Nine Inch Nails, em suma, nada que um velho safado fosse gostar de ouvir. Ele olhou para Ela.
- Essa música é uma merda... Esse DJ é um merda. Acho que vou me apresentar ao dono quando entrarmos... Posso escolher músicas melhor do que esse cara.
Mais um brutamontes saiu pela porta de entrada e se juntou aos outros dois. Este, um sujeito de camisa preta muito apertada. Sustentava um tipo físico que de longe pode parecer sólido, mas é pura banha. Um taxista estacionou o carro na frente da entrada e saiu do carro, se juntando aos três.
Começou então uma conversa amigável entre os quatro, quando a massa de bigode perguntou ao gordo que pode parecer forte à certa distância se ele já não tinha usado a mesma camisa preta na noite anterior. O gordo hesitou e os outros imediatamente começaram a rir e se bater como animais no cio. As risadas eram risadas infantis, no entanto, do tipo que você não imagina vindo de um senhor de bigode. Em sua defesa, rindo, o gordo deu um tremendo tapa na nuca da massa de bigode e este olhou para ele com a língua entre os dentes, o segurou pelas duas pernas e os dois foram ao chão, rindo muito, vermelhos de muito trago e tapa. Os outros dois assobiavam batendo palmas, enquanto os amigos descarregavam sua energia rolando no chão sujo às duas da madrugada. Ela olhou para Ele.
- Parecem duas crianças.
- Coloque quatro homens juntos e você tem uma guerra – disse Ele – ou muitas risadas. Agora coloque quatro idiotas juntos e você tem um jardim de infância, ou um manicômio.
6. Mentira
Logo na entrada, Ele e Ela viram que o bar estava vazio e isso sim, parecia bem real. Eles subiram então ao segundo piso. Encontraram muitas mesas e cadeiras vazias e uma menina de cabelos alaranjados como um fogo pálido, sentada com a cara mergulhada numa poça de saliva. No balcão estavam o dono do estabelecimento, um garotão loiro com cara de assustado e as sobrancelhas muito juntas, olhos levemente enviesados, mais a mulher do garotão, uns dez anos mais velha que ele, loira também, sem muito tempero mas com muito decote, os peitos murchos mas uns belos olhos, cabelos engordurados puxados para trás, além de um sujeito já bastante embriagado, que se apoiava no balcão com as duas mãos e enfiava a cabeça quase na cara dos seus interlocutores para lhes falar algo sobre a empresa de desodorizadores da qual era sócio-proprietário. A empresa vinha crescendo no mercado. O sujeito gritava sem necessidade e falava cuspindo. O garotão raramente dizia palavra e, quando dizia, dizia olhando para cima. Suspiro de um Romeu de quinta. A mulher do garotão era com quem um cliente deveria falar – e também um chato – e era ela quem conversava sobre desodorizadores com o bêbado. O bêbado tinha um aerosol na mão.
- Bom Ar é concorrente! – ele gritava. – Vocês tem que usar o Gleid, que é onde trabalho... Esse sim, neutraliza primeiro, depois dá o toque de lavanda, baunilha, flores do campo... Sabe, estamos crescendo no mercado.
Ele pegou o cardápio. Nada era muito barato. Nada como seria na Los Angeles dos anos 50. No final do cardápio aparecia escrito: “Para os Bukowskianos”. Ele deu uma checada: “vodca, rum, tequila, conhaque, uísque, vinho e suco de tomate”. Ela chegou perto Dele.
- Nossa! Alguém bebe isso e ainda consegue ficar de pé?
- Não. É mentira...
7. Coisa Rara
Voltaram ao andar de baixo. Ele se dirigiu ao balcão e Ela foi dançar. No balcão havia um sujeito que sempre esteve ali no balcão. Um sujeito muito forte da cintura para cima, mas com pernas de vareta, o que mostra que na verdade ele não é forte, mas sim um balão moldado. Você mede a força de um homem pelo tamanho do seu antebraço, pela circunferência do seu pescoço e, claro, olhando para os seus olhos. Os exageradamente fortes, normalmente, têm pernas finas e olhos pequenos, porque usam esteróides mas trabalham apenas braços, costas e peitoral, abandonando as pernas às portas da verdade. Era o caso do grandalhão do balcão. No entanto, ele usava uma camisa clara muito justa, além dos cabelos empapados com gel, num topete infame.
Em frente ao homem havia um casal, no outro lado do balcão. Um outro sujeito do mesmo feitio, bem forte nos braços, ombros e peitoral, portanto, com uma camisa muito apertada, mas mirrado da cintura para baixo, com bastante gel nos cabelos. O que diferenciava o segundo forte do primeiro forte eram apenas duas enormes costeletas no segundo. A mulher ao lado do de costeletas era muito bonita, cheirosa, cabelos alisados, brilhosa, sobrancelhas milimétricas, e não havia nada nela que pudesse despertar qualquer interesse, pois não havia nada nela que você já não estivesse cansado de ver nas revistas. Ainda por cima mascava chiclete com a boca aberta. Se insinuava para o homem de camisa apertada, no lado de dentro do balcão. Estava acompanhada pelo de costeletas e camisa apertada, no lado de fora. Mas o de costeletas também olhava para o de camisa apertada no lado de dentro do balcão. Conversavam com muita intimidade, a mão de um discretamente sobre a mão do outro. A mulher perfeita e sem graça tentava desesperadamente seduzir o rapaz situado no lado de dentro do balcão. E isso era mais arriscado, afinal, não era o seu homem. Mas este, por sua vez, não dava a menor trela. Então ela tentava seduzir seu próprio homem, o que não tinha lá muita graça, mas era mais garantido. Entretanto, ele também não lhe dava a menor trela. Permanecia conversando casualmente e sendo alisado pelo de camisa apertada por detrás do balcão.
O mais ridículo era que os dois faziam isso tudo de maneira muito séria e máscula, num estilo village people defasado, ou seja: eram bibas, sim, mas não podiam afrescalhar.
Ele concluiu que era raro dois homens conseguirem enganar uma mulher daquela maneira descarada, mas depois viu que aquela não era uma mulher em que se pudesse basear uma conclusão.
8. Mulher-Lobinho
No meio da noite, depois de algumas caipirinhas quentes, feitas por um sujeito que já tinha saído no tapa com dois clientes àquela noite, Ele se perdeu Dela e se recostou na parede, flertando.
A clientela era composta basicamente por bêbados retirados dos contos do escritor que dava nome ao bar. Bichas enrustidas, sapatões encrenqueiros, e era basicamente isso. O bar já estava lotado, de modo que não demorou muito para que uma garota encachaçada se aproximasse Dele, com uma lata de cerveja na mão.
Ele a olhou rapidamente, mas naquela escuridão qualquer olhar seria um erro. Ficaram assim, virados para frente, mamando suas latas de cerveja, recostados à parede. Certa hora a lata Dele terminou, então Ele a jogou no chão e a amassou com a sola do pé. A menina prontamente lhe entregou sua própria lata, sem dizer nada, e continuou olhando para frente como um boneco de marionete japonês. Ele deu um grande gole na cerveja e se virou para ela, que não olhou para Ele.
Ela tinha os cabelos escuros e lambidos, usava um vestido meio fora de estação e um chapeuzinho desses de festa de aniversário para crianças, feito com cartolina. Estava com uma língua-de-sogra na boca. Parecia resignada ou completamente biruta, ou os dois, combinação bastante comum. Ele achava que beberia a lata inteira sem que ela desse por nada quando, de repente, ela o pegou pela mão e o arrastou até o balcão do bar. Chegando ali, se virou para Ele e lhe deu um beijo na boca, muito melado e com cheiro de vômito velho. Não se olharam imediatamente depois.
- É seu aniversário? – Ele perguntou depois de um minuto ou dois sem falarem nada.
- Um amigo...
- Você não parece muito contente...
- Na verdade não vim pelo aniversário. Vim porque queria comer alguém.
Ele sorriu. A menina parecia decidida, apesar de indisposta. Então Ele viu através da luz de néon do balcão que ela tinha as gengivas muito grossas. Lhe cobriam os dentes quase por completo. Serviria de qualquer forma.
- Eu sirvo? – disse Ele.
- Claro – disse ela. E foram para a casa Dele.
Quando deitaram na cama, ela parecia desacordada. Ele já tinha achado estranho seu comportamento no caminho: parando de posto em posto para mijar e voltando com uma nova garrafa de cerveja. Fumava demais. Viu que era gorda como um pernil. Não havia mais o que fazer a não ser continuar em frente e terminar o mais rápido possível, de preferência sem escoriações. Mas quando Ele viu toda aquela carne esparramada na sua cama, com os olhos fechados e um sorriso suicida, pensou: “Onde vim parar?”. Então viu que era Seu Próprio quarto, apesar de não reconhecê-Lo imediatamente. As paredes dançavam. Ou talvez fosse a Sua cabeça. A menina não cheirava nada bem, reparou. Nem sabia muito bem o que fazer. Apenas permanecia esparramada com os olhos fechados e aquele barrigão fofo para cima. Arrancou o vestido da guria com certa violência, para ver se isso estimulava nela qualquer reação voluntária. Nada aconteceu. Passou então à calcinha, quase uma rede de pescar mexilhões. Mãe de todos os deuses, o cheiro que sentiu! Sempre pensando que não havia o que fazer a não ser seguir em frente, arriou a calcinha, prendeu a respiração e deu de cara com um absorvente coagulado de sangue. Foi quando a menina deu por si e puxou com muita força a calcinha de volta até a cintura.
- Você devia ter me dito – Ele disse. – Mas não tem problema.
- EU é que sei se tem ou não tem problema – ela disse num tom professoral, ou de uma puta cara.
- Tudo bem – Ele disse. – Você joga gamão?
Foi então que ela começou a chorar e chutar a cama, com as perninhas roliças soltas no ar. Ele a segurou com força e ela parou, mas seus olhos continuaram como se fossem independentes do resto do corpo.
- Ei, era só uma brincadeira!
Subitamente ela se tornou carinhosa, de forma um pouco compulsiva: colou-se ao corpo Dele, Lhe entrelaçou as costas com as pernas numa chave e quase Lhe arrancou uma orelha com os dentes. Talvez porque estivesse muito bêbado, Ele ficou excitado. Abriu as pernas da mulher e arrancou sua calcinha à força. Foi quando tudo ficou escuro e apenas se ouviam os murmúrios de choro da mulher: um choro de humilhação. Tentando não se abalar com aquilo, apesar de já bastante nauseado, Ele começou a apalpar no escuro, mas não encontrou nenhum espaço para entrar ali. “Então era isso o tempo todo”, Ele pensou.
Os pêlos vaginais muito negros e enrolados se ligavam aos da virilha e cheiravam muito mal, esquecidos pelo tempo em desuso. Depois de alguns minutos com a mão ali, finalmente encontrou os grandes lábios que, conforme reparou, eram grandes de fato. Mas a essa altura já estava com o pau flácido como uma centopéia.
Dormiu sobre a mulher. Acordou no dia seguinte com os urros espumantes do pai da moça ecoando pelo seu telefone celular.
- Pai... Não, pai! Pai... Eu tô aqui na Cíntia, pai – dizia a moça, com um sorriso desesperado.
- VOCÊ NÃO MINTA PARA MIM! – rosnava o pai no outro lado da linha, com a voz semelhante a um apresentador de telejornal embriagado.
Ao fundo ainda era possível ouvir o pranto teatral da mãe, que chorava muito alto com a voz esganiçada.
- EU LIGUEI JÁ PARA A CÍNTIA! E JÁ LIGUEI PARA O IML INCLUSIVE, SE VOCÊ QUER SABER! E O QUE VOCÊ PENSA DISSO? - vociferou o pai sem deixá-la responder.
A cama estava molhada e o cheiro lembrava a morte, mesmo que Ele não soubesse como poderia fazer tal associação, já que nunca havia morrido. Depois de desligar o telefone, ficaram ambos deitados olhando para o teto e a menina soluçava. Como alguém de quem foi tragada a alma, ela se levantou, e Ele acompanhou a moça até o elevador. O elevador chegou e Ele deu um beijo na testa da moça, como quem quer dizer: “tudo bem, não se preocupe”. Ela entendeu o recado e despejou mais algumas lágrimas, como querendo dizer “perdão”.
Semanas depois, Ele cruzou com a mulher num bar, acompanhada de várias amigas. Olhou para ela mas, antes que pudesse acenar, ela virou a cara e saiu de lado puxando as amigas, que riam como maritacas em período de reprodução. Mais um caso de amor desperdiçado...
Ele sentou com a noite triste sobre a banqueta e permaneceu lá, contando palitos de dente, pensando no caso que havia criado e no amor assassinado – nada Lhe vindo à cabeça a não ser o total desperdício das vidas solitárias. Então pediu mais uma dose barata de morte líquida reciclável e evitou chorar, sem conseguir.
No final da peça Ele não sabia quem era Danton. Saiu um tanto confuso, pensando: “uma hora Danton é covarde... Outra hora é um bêbado... Depois vira uma puta! Outras três putas: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Então, de repente, Danton é um sujeito que diz: ‘hoje estive sentado na pedra do Arpoador fumando um cigarro. Fiquei ali olhando o mar... Pensei que eu não era nem uma gota daquele mar... E quantas gotas tem o mar! E eu me acho tão importante, tão importante... vocês não imaginam o quanto... Nossa que papo ridículo’”.
E esse foi o fim da morte de Danton. O começo do movimento da classe artística pelas veias venenosas do teatro do Sesc, Copacabana. Mulheres com muita maquiagem e pouca cor, mais a intensidade dos confusos e nenhum parafuso no lugar certo, o que, parece, sempre serviu às artes e aos psiquiatras para passarem as férias em Positano, bebendo bebidas fumacentas e ouvindo calipso. Mulheres para você se casar com elas e morrer dignamente, diariamente: embriagado, sentado, tendo tido (ou sonhado com) um ataque cardíaco na sua sacada de frente para o mar – numa mão um bilhete de despedida, “simplesmente não agüentei mais... boa sorte” – no apartamento, centro da sala, mais nenhum móvel, apenas uma muda de roupa – na outra mão uma rosa partida – sangue de festim que escorre pelo tapete de corda trançada e isso era tudo no que Ele conseguia pensar olhando aqueles rostos sorridentes que falavam sem parar de inventar emoções para um domingo meio ensabadado, enquanto subia as escadas do subsolo para o submundo que, apesar de sub, está ao nível do mar.
2. Noite de sexta-feira
A rua parecia um cenário mal desmontado. As pessoas não andavam, pareciam escorregar pelas calçadas, se escondiam de alguma coisa. Havia homens vendendo lingüiças fritas e corações de galinha feitos na brasa de uma lata de óleo. Não havia sorrisos nos rostos de mais ninguém.
Ele e Ela saíram do teatro para a rua e viram que o mundo de verdade era preto e branco, não menos bonito por isso, nem menos complexo, apenas tinha menos cores, as outras fomos nós que inventamos, e parece que até hoje insistimos na mesma invenção.
Sentaram-se para comer num restaurante mexicano, com uma “comida leve”, segundo Ela, o que a Ele pareceu uma contradição em termos. Ela pediu tacos com carne de sol e tomates picados embebidos no azeite. Ele pediu uma cerveja já que uma salvação sairia caro demais. Uma conhecida estava na mesa ao lado e acabaram se juntando, os três. A tal conhecida não tinha nada dentro dos olhos. Nem tristeza nem alegria. Nem uma pista. Seus ombros formavam um cabide torto numa armação parda de ossos. Bufava sem parar e acendia um cigarro no outro. Um sujeito tocava Djavan num violão e uma platéia apática devorava seus tacos e suas vidas enquanto sorria amarelo e olhava para baixo, ou para muitos lugares, sem enxergar nenhum.
- Parece que arrancaram o saco desse cara! – disse Ele irritado, batendo a lata de cerveja na mesa e esticando o pescoço, referindo-se ao sujeito que tocava Djavan.
- Estou exausta... Vou pra casa – emendou a conhecida entediada.
- Não quer ir dançar conosco? – disse Ela. – Nós vamos no Bukowski.
- O que é isso? – disse a conhecida, como se de fato não fizesse nenhuma questão de saber.
- Uma bodega que toca rock n’ roll – disse Ela.
Ele ficou pensando como era triste um sujeito que, depois de escrever alguns livros honestos e morrer dignamente de leucemia, se torna símbolo de tudo aquilo que mais desprezou em vida.
- Não gosto de bodegas – disse a conhecida.
- Você precisa de uma piroca, eu acho – disse Ele batendo a lata na mesa, ao som de “Flor de Liz”.
- E você precisa de uns tapas – disse a conhecida, jogando uns trocados na mesa e erguendo-se bruscamente, de modo que tropeçou e caiu de joelhos no chão.
Ela tentou levantar a tal conhecida, mas levou um tapa na cara. “Ei!”, gritou, “o que eu te fiz, cacete?!”. A conhecida apenas olhou para os lados, ficou parada um tempo, depois saiu assustada, na mesma hora em que o sujeito que assassinava Djavan fez uma pausa para um gargarejo. Eles riram e pagaram o que faltava da conta. “Vamos fazer uma pequena pausa agora”, disse o sujeito com o violão.
3. Conhaque
Ela tinha na bolsa um cigarro que ainda era ilegal, apesar de todo mundo usar e movimentar a maior parte da economia mundial, que também é ilegal assim como o cigarro, apesar de todo mundo usar também para movimentar suas contas poderosas nas Ilhas Caiman e suas instituições filantrópicas no Nepal, que também são ilegais, pura fachada, e poderíamos ficar a noite toda nessa lengalenga até chegar a conclusão de que o ser humano era ilegal e, por conseqüência, também eram as suas leis.
Eles decidiram que fumariam metade do cigarro no caminho e outra metade dentro do bar.
Uma e meia da manhã. Os olhos não permitiam que o mundo fosse bonito. Caixas empilhadas nas ruas. Mendigos se coçando debaixo de trapos. Grunhidos do inferno ecoavam dos cantos mais escuros. O barulho distante mas constante dos ratos mastigando as sobras do mundo. Sacos de lixo virados, empilhados como os mortos de uma guerra perdida. Gatos que jamais perdem a classe, mesmo famintos. Fiapos de macarrão. Líquidos escuros, pastosos, pessoas espalhadas pelo chão cheirando cola. Ninguém tem nada a oferecer. Ninguém se olha. Olham por cima dos ombros, para cima. Todos precisam de tempo para amar, mas ninguém sabe como procurar aquilo que não conhece. E o tempo exige amor demais para que você aprecie seu efeito físico.
Pararam na porta de um inferninho chamado “Bar Virgem Santa”. “Uma virgem para foder os pecadores”, Ele pensou, mas disse: “que merda, o bar fechou”. De fato, a grade estava puxada até em cima. Sobravam para os olhos apenas uma fresta de luz, por onde se via um grande tapete de carne arenosa, pendurado por dois ganchos no teto, e uma fileira de garrafas de vidro cheias de um líquido transparente, em cujo rótulo lia-se: “licor de alcaçuz”, sobre uma prateleira remendada com esparadrapos.
Vozes falavam em algum dialeto incompreensível dentro do bar. Ela se aproximou da grade e deu três pancadas no aço com a mão. As vozes pararam lá dentro.
- Vocês ainda podem me vender um conhaque? – disse Ela.
- Quem é você? – perguntou uma voz.
- Marisa – disse Ela. – Duas doses de Domecq, por gentileza – e estendeu uma nota de cinco reais na ponta dos pés.
- É três e cinqüenta a dose, Danuza – retorquiu a voz de dentro do bar.
Risadinhas. Ela entregou mais dois reais pela fresta, e disse:
- Marisa...
Duas mãos passaram dois copos de plástico cheios até a metade com um líquido cor de ferrugem, que também calhava de ter gosto de ferrugem e cheirava a álcool de cozinha. Eles brindaram antes de beber, mas isso não melhorou o gosto do líquido.
Na frente do Bar Bukowski, um homem muito magro, já bem calvo, muito curvado e amarelo, entrava no seu jipe Pajero acompanhado de uma loira imensa, com uns três membros originais no corpo.
- Pajero é carro de quem tem pau pequeno – Ele disse, e deu uma golada, pelo que precisou enrugar o cenho.
4. Intimidade
Ele falava para Ela sobre a tal conhecida entediada que estava com Eles no mexicano.
- Isso é muito estranho. Num dia você chupa o cu da mulher. No outro dia ela te trata cheia de formalidade... O que é a intimidade?
- É isso...
- Isso o quê?
- Você dizer esses absurdos e eu ter que ouvir. Isso é a intimidade.
Brindaram. Como os copos eram de plástico, ao se chocarem fizeram um barulho semelhante ao de uma barata sendo esmagada no asfalto, e um deles rachou.
5. Crianças
Na porta do bar havia dois seguranças, ambos massas exageradas e quadradas, um de bigode e sem cabelo, outro de cabelo e sem bigode, os dois parecidos com uma dupla de comediantes liquidados, com os pés escorados, cada um de um lado da porta, as mãos enfiadas nos bolsos. Ele e Ela observavam um pouco afastados, ouvindo as músicas que vinham lá de dentro do bar, nada muito prometedor: Franz Ferdinand, Blur, Cure, Nine Inch Nails, em suma, nada que um velho safado fosse gostar de ouvir. Ele olhou para Ela.
- Essa música é uma merda... Esse DJ é um merda. Acho que vou me apresentar ao dono quando entrarmos... Posso escolher músicas melhor do que esse cara.
Mais um brutamontes saiu pela porta de entrada e se juntou aos outros dois. Este, um sujeito de camisa preta muito apertada. Sustentava um tipo físico que de longe pode parecer sólido, mas é pura banha. Um taxista estacionou o carro na frente da entrada e saiu do carro, se juntando aos três.
Começou então uma conversa amigável entre os quatro, quando a massa de bigode perguntou ao gordo que pode parecer forte à certa distância se ele já não tinha usado a mesma camisa preta na noite anterior. O gordo hesitou e os outros imediatamente começaram a rir e se bater como animais no cio. As risadas eram risadas infantis, no entanto, do tipo que você não imagina vindo de um senhor de bigode. Em sua defesa, rindo, o gordo deu um tremendo tapa na nuca da massa de bigode e este olhou para ele com a língua entre os dentes, o segurou pelas duas pernas e os dois foram ao chão, rindo muito, vermelhos de muito trago e tapa. Os outros dois assobiavam batendo palmas, enquanto os amigos descarregavam sua energia rolando no chão sujo às duas da madrugada. Ela olhou para Ele.
- Parecem duas crianças.
- Coloque quatro homens juntos e você tem uma guerra – disse Ele – ou muitas risadas. Agora coloque quatro idiotas juntos e você tem um jardim de infância, ou um manicômio.
6. Mentira
Logo na entrada, Ele e Ela viram que o bar estava vazio e isso sim, parecia bem real. Eles subiram então ao segundo piso. Encontraram muitas mesas e cadeiras vazias e uma menina de cabelos alaranjados como um fogo pálido, sentada com a cara mergulhada numa poça de saliva. No balcão estavam o dono do estabelecimento, um garotão loiro com cara de assustado e as sobrancelhas muito juntas, olhos levemente enviesados, mais a mulher do garotão, uns dez anos mais velha que ele, loira também, sem muito tempero mas com muito decote, os peitos murchos mas uns belos olhos, cabelos engordurados puxados para trás, além de um sujeito já bastante embriagado, que se apoiava no balcão com as duas mãos e enfiava a cabeça quase na cara dos seus interlocutores para lhes falar algo sobre a empresa de desodorizadores da qual era sócio-proprietário. A empresa vinha crescendo no mercado. O sujeito gritava sem necessidade e falava cuspindo. O garotão raramente dizia palavra e, quando dizia, dizia olhando para cima. Suspiro de um Romeu de quinta. A mulher do garotão era com quem um cliente deveria falar – e também um chato – e era ela quem conversava sobre desodorizadores com o bêbado. O bêbado tinha um aerosol na mão.
- Bom Ar é concorrente! – ele gritava. – Vocês tem que usar o Gleid, que é onde trabalho... Esse sim, neutraliza primeiro, depois dá o toque de lavanda, baunilha, flores do campo... Sabe, estamos crescendo no mercado.
Ele pegou o cardápio. Nada era muito barato. Nada como seria na Los Angeles dos anos 50. No final do cardápio aparecia escrito: “Para os Bukowskianos”. Ele deu uma checada: “vodca, rum, tequila, conhaque, uísque, vinho e suco de tomate”. Ela chegou perto Dele.
- Nossa! Alguém bebe isso e ainda consegue ficar de pé?
- Não. É mentira...
7. Coisa Rara
Voltaram ao andar de baixo. Ele se dirigiu ao balcão e Ela foi dançar. No balcão havia um sujeito que sempre esteve ali no balcão. Um sujeito muito forte da cintura para cima, mas com pernas de vareta, o que mostra que na verdade ele não é forte, mas sim um balão moldado. Você mede a força de um homem pelo tamanho do seu antebraço, pela circunferência do seu pescoço e, claro, olhando para os seus olhos. Os exageradamente fortes, normalmente, têm pernas finas e olhos pequenos, porque usam esteróides mas trabalham apenas braços, costas e peitoral, abandonando as pernas às portas da verdade. Era o caso do grandalhão do balcão. No entanto, ele usava uma camisa clara muito justa, além dos cabelos empapados com gel, num topete infame.
Em frente ao homem havia um casal, no outro lado do balcão. Um outro sujeito do mesmo feitio, bem forte nos braços, ombros e peitoral, portanto, com uma camisa muito apertada, mas mirrado da cintura para baixo, com bastante gel nos cabelos. O que diferenciava o segundo forte do primeiro forte eram apenas duas enormes costeletas no segundo. A mulher ao lado do de costeletas era muito bonita, cheirosa, cabelos alisados, brilhosa, sobrancelhas milimétricas, e não havia nada nela que pudesse despertar qualquer interesse, pois não havia nada nela que você já não estivesse cansado de ver nas revistas. Ainda por cima mascava chiclete com a boca aberta. Se insinuava para o homem de camisa apertada, no lado de dentro do balcão. Estava acompanhada pelo de costeletas e camisa apertada, no lado de fora. Mas o de costeletas também olhava para o de camisa apertada no lado de dentro do balcão. Conversavam com muita intimidade, a mão de um discretamente sobre a mão do outro. A mulher perfeita e sem graça tentava desesperadamente seduzir o rapaz situado no lado de dentro do balcão. E isso era mais arriscado, afinal, não era o seu homem. Mas este, por sua vez, não dava a menor trela. Então ela tentava seduzir seu próprio homem, o que não tinha lá muita graça, mas era mais garantido. Entretanto, ele também não lhe dava a menor trela. Permanecia conversando casualmente e sendo alisado pelo de camisa apertada por detrás do balcão.
O mais ridículo era que os dois faziam isso tudo de maneira muito séria e máscula, num estilo village people defasado, ou seja: eram bibas, sim, mas não podiam afrescalhar.
Ele concluiu que era raro dois homens conseguirem enganar uma mulher daquela maneira descarada, mas depois viu que aquela não era uma mulher em que se pudesse basear uma conclusão.
8. Mulher-Lobinho
No meio da noite, depois de algumas caipirinhas quentes, feitas por um sujeito que já tinha saído no tapa com dois clientes àquela noite, Ele se perdeu Dela e se recostou na parede, flertando.
A clientela era composta basicamente por bêbados retirados dos contos do escritor que dava nome ao bar. Bichas enrustidas, sapatões encrenqueiros, e era basicamente isso. O bar já estava lotado, de modo que não demorou muito para que uma garota encachaçada se aproximasse Dele, com uma lata de cerveja na mão.
Ele a olhou rapidamente, mas naquela escuridão qualquer olhar seria um erro. Ficaram assim, virados para frente, mamando suas latas de cerveja, recostados à parede. Certa hora a lata Dele terminou, então Ele a jogou no chão e a amassou com a sola do pé. A menina prontamente lhe entregou sua própria lata, sem dizer nada, e continuou olhando para frente como um boneco de marionete japonês. Ele deu um grande gole na cerveja e se virou para ela, que não olhou para Ele.
Ela tinha os cabelos escuros e lambidos, usava um vestido meio fora de estação e um chapeuzinho desses de festa de aniversário para crianças, feito com cartolina. Estava com uma língua-de-sogra na boca. Parecia resignada ou completamente biruta, ou os dois, combinação bastante comum. Ele achava que beberia a lata inteira sem que ela desse por nada quando, de repente, ela o pegou pela mão e o arrastou até o balcão do bar. Chegando ali, se virou para Ele e lhe deu um beijo na boca, muito melado e com cheiro de vômito velho. Não se olharam imediatamente depois.
- É seu aniversário? – Ele perguntou depois de um minuto ou dois sem falarem nada.
- Um amigo...
- Você não parece muito contente...
- Na verdade não vim pelo aniversário. Vim porque queria comer alguém.
Ele sorriu. A menina parecia decidida, apesar de indisposta. Então Ele viu através da luz de néon do balcão que ela tinha as gengivas muito grossas. Lhe cobriam os dentes quase por completo. Serviria de qualquer forma.
- Eu sirvo? – disse Ele.
- Claro – disse ela. E foram para a casa Dele.
Quando deitaram na cama, ela parecia desacordada. Ele já tinha achado estranho seu comportamento no caminho: parando de posto em posto para mijar e voltando com uma nova garrafa de cerveja. Fumava demais. Viu que era gorda como um pernil. Não havia mais o que fazer a não ser continuar em frente e terminar o mais rápido possível, de preferência sem escoriações. Mas quando Ele viu toda aquela carne esparramada na sua cama, com os olhos fechados e um sorriso suicida, pensou: “Onde vim parar?”. Então viu que era Seu Próprio quarto, apesar de não reconhecê-Lo imediatamente. As paredes dançavam. Ou talvez fosse a Sua cabeça. A menina não cheirava nada bem, reparou. Nem sabia muito bem o que fazer. Apenas permanecia esparramada com os olhos fechados e aquele barrigão fofo para cima. Arrancou o vestido da guria com certa violência, para ver se isso estimulava nela qualquer reação voluntária. Nada aconteceu. Passou então à calcinha, quase uma rede de pescar mexilhões. Mãe de todos os deuses, o cheiro que sentiu! Sempre pensando que não havia o que fazer a não ser seguir em frente, arriou a calcinha, prendeu a respiração e deu de cara com um absorvente coagulado de sangue. Foi quando a menina deu por si e puxou com muita força a calcinha de volta até a cintura.
- Você devia ter me dito – Ele disse. – Mas não tem problema.
- EU é que sei se tem ou não tem problema – ela disse num tom professoral, ou de uma puta cara.
- Tudo bem – Ele disse. – Você joga gamão?
Foi então que ela começou a chorar e chutar a cama, com as perninhas roliças soltas no ar. Ele a segurou com força e ela parou, mas seus olhos continuaram como se fossem independentes do resto do corpo.
- Ei, era só uma brincadeira!
Subitamente ela se tornou carinhosa, de forma um pouco compulsiva: colou-se ao corpo Dele, Lhe entrelaçou as costas com as pernas numa chave e quase Lhe arrancou uma orelha com os dentes. Talvez porque estivesse muito bêbado, Ele ficou excitado. Abriu as pernas da mulher e arrancou sua calcinha à força. Foi quando tudo ficou escuro e apenas se ouviam os murmúrios de choro da mulher: um choro de humilhação. Tentando não se abalar com aquilo, apesar de já bastante nauseado, Ele começou a apalpar no escuro, mas não encontrou nenhum espaço para entrar ali. “Então era isso o tempo todo”, Ele pensou.
Os pêlos vaginais muito negros e enrolados se ligavam aos da virilha e cheiravam muito mal, esquecidos pelo tempo em desuso. Depois de alguns minutos com a mão ali, finalmente encontrou os grandes lábios que, conforme reparou, eram grandes de fato. Mas a essa altura já estava com o pau flácido como uma centopéia.
Dormiu sobre a mulher. Acordou no dia seguinte com os urros espumantes do pai da moça ecoando pelo seu telefone celular.
- Pai... Não, pai! Pai... Eu tô aqui na Cíntia, pai – dizia a moça, com um sorriso desesperado.
- VOCÊ NÃO MINTA PARA MIM! – rosnava o pai no outro lado da linha, com a voz semelhante a um apresentador de telejornal embriagado.
Ao fundo ainda era possível ouvir o pranto teatral da mãe, que chorava muito alto com a voz esganiçada.
- EU LIGUEI JÁ PARA A CÍNTIA! E JÁ LIGUEI PARA O IML INCLUSIVE, SE VOCÊ QUER SABER! E O QUE VOCÊ PENSA DISSO? - vociferou o pai sem deixá-la responder.
A cama estava molhada e o cheiro lembrava a morte, mesmo que Ele não soubesse como poderia fazer tal associação, já que nunca havia morrido. Depois de desligar o telefone, ficaram ambos deitados olhando para o teto e a menina soluçava. Como alguém de quem foi tragada a alma, ela se levantou, e Ele acompanhou a moça até o elevador. O elevador chegou e Ele deu um beijo na testa da moça, como quem quer dizer: “tudo bem, não se preocupe”. Ela entendeu o recado e despejou mais algumas lágrimas, como querendo dizer “perdão”.
Semanas depois, Ele cruzou com a mulher num bar, acompanhada de várias amigas. Olhou para ela mas, antes que pudesse acenar, ela virou a cara e saiu de lado puxando as amigas, que riam como maritacas em período de reprodução. Mais um caso de amor desperdiçado...
Ele sentou com a noite triste sobre a banqueta e permaneceu lá, contando palitos de dente, pensando no caso que havia criado e no amor assassinado – nada Lhe vindo à cabeça a não ser o total desperdício das vidas solitárias. Então pediu mais uma dose barata de morte líquida reciclável e evitou chorar, sem conseguir.
Comentários
Há nove anos, numa disciplina de História Econômica, Social e Política do Brasil, eu usei textos de cronistas para falar de nossa história cotidiana: de Machado de Assis até Luis Fernando Verissimo. Se eu fosse ministrar essa disciplina hoje, teria que utilizar textos como esse seu para falar desse início de século XXI.
jp: desculpe se me estiquei demais j.p. espero que não tenha sido muito doloroso simplesmente parar de ler e fazer outra coisa mais interessante. esse é o lado bom da internet, ninguem reclamaria disso. de qualquer forma, gosto de variar textos grandes e curtos, como forma de esticar o estilo a outras áreas cognitivas.
marisa: por favor, moça, não deixe de dizer quando gostar ou quando detestar. sou muito carente e adoro ser contrariado. obrigado mesmo pela leitura. bom saber que o texto toca alguem.
edu: cara, vc exagera... mas vou tomar como elogio de alguem que admiro, envergonhadamente e com as bochechas vermelhas.
ps: e a todos os que lerem, peço desculpas pelos erros ortogrpaficos. acontece que eu tentava corrigi-los, assim como a outros problemas semânticos e de estrutura, quando caiu minha famigerada internet e, em suma, não pude republicar o texto devidamente. espero que não haja problema e corrigir quando tiver a conexão outra vez.
um grande abraço a todos.
leo.