UMA MULHER SEM SAPATOS [Ana Coutinho]


Márcia é uma mulher interessante, bonita, inteligente e, claro, independente. Dizer que é independente nos dias de hoje é quase sinônimo de solteira. Quando falamos de mulheres lindas e bem-sucedidas, é como se fosse um texto para ser completado com “sozinha”.

Com Márcia não era diferente. Ela sabia que era parte das estatísticas, uma matéria de revista, sabia que o mundo era assim mesmo, que a vida tinha dessas coisas e tal. Márcia sabia, sobretudo, que ser sozinha, linda e inteligente, dava a ela um ar ainda mais interessante. Não aos homens unicamente, mas às amigas, aos tios, aos senhores que a olhavam na rua, quando ela saía do salão com o cabelo longo e liso que tinha. Era como se ela fosse parte de uma reportagem da “Claudia”, era como se as casadas a invejassem e os solteiros a desejassem, ainda que com tempo limitado. Os seus relacionamentos existiam, eram ótimos, mas tinham, sem exceção, uma data de validade – tal como um pote de requeijão.

Ainda assim, ainda causadora de inveja e desejo, Márcia se achava uma mulher normal. Nunca foi infeliz como as mulheres da reportagem - imagine se ela, com tanta coisa pra fazer, ia se preocupar em achar um homem pra ter dor de cabeça.

Márcia vivia bem e tranquila, até uma tarde de sábado, um sol brilhante, quando resolveu comprar um sapato novo, provavelmente uma sandália para o verão que estava por vir.

Com o som no último volume, ela chegou ao estacionamento da loja, dessas enormes, preços justos, modelos lindos. Tinha uma pequena multidão no local, mulheres de todos os tamanhos, cores e idades se espremiam entre as paredes recheadas de sapatos, bolsas, carteiras, cintos.

Márcia correu para as prateleiras que expunham seu número, 36, e começou a olhar. Separou uma sandália anabela e também um tênis. Sentou como deu e, com os sapatos já nos pés, achou aquela cor muito difícil de combinar.

- “Moço, moço, você pode ver se tem marrom dessa sandália?” Márcia perguntou sem nem se levantar.

- “Marrom? Esse é marrom...”

- “Não, não, quis dizer caramelo. Pode ver se tem caramelo?”.

O homem a olhou cabisbaixo: - “Tem não... Só veio essa cor aí e preto”.

Márcia levantou, agradeceu e foi em busca de outro sapato. Achou, mas o salto era fino demais. Viu uma outra sandália maravilhosa, mas essas trançadas machucam à beça. Tentou no espaço do 37, nada. Quer dizer, tudo. Um mundo de sapatos, mas nada que a agradasse. Márcia foi ficando sem jeito, triste, perdendo de repente a alegria daquele dia tão ensolarado.

Fez uma conta rápida: vinte modelos por prateleira vezes cinco prateleiras, cem sapatos. Em uma parede... Eram quatro; logo, ali estavam quatrocentos pares de sapatos diferentes, apenas no 36. Se ela fosse nas botas, ou usasse um pouco do 37, logo chegava em mil diferentes pares à sua disposição.

Márcia respirou fundo com uma conclusão - era como se uma luz enfim se acendesse dentro dela. De repente, ela não se sentiu tão linda e triunfante por ser uma reportagem do Globo Repórter. Ela tentou sentar, mas não achou lugar. Foi pedindo licença, saindo devagar. Passou pelo caixa e tomou um susto com a fila - que dava bem umas quatro voltas de mulheres cheias de sacolas com diferentes sapatos. Mulheres feias, uma ou outra gordinha, outra mais velha, mulheres que talvez a invejassem, mas que eram absolutamente capazes de achar um par de sapatos que lhes agradasse no meio de mil opções.

Quando chegou até o carro, de mãos vazias, Márcia se sentiu uma enorme tola. Percebeu, pela primeira vez, que talvez não valesse tanto assim ter quantas horas quisesse no banho. Notou que o homem certo, assim como o sapato certo, talvez estivesse sempre em falta, talvez tivesse sido pego por uma feiosa de cabelo enrolado que chegou alguns minutos antes dela porque furou um farol vermelho. E notou que a sandália, assim como o homem, talvez fizesse falta se considerarmos que está tão quente e que logo a temporada de calor está por aí.

Márcia sentiu-se subitamente infeliz; pagou o estacionamento e foi para casa. Lá chegando, calçou suas havaianas antigas, vasculhou por uns cartões de visita velhos que ela jogara fora um dia antes. E enquanto os remexia, pensava: “Quem sabe, mesmo se não for marrom, mesmo se o salto for um pouco fino, ou se estiver pegando em cima, mesmo assim, quem sabe se não laceia com o tempo e me veste os pés, ao menos no verão...”

Doce Rotina

Imagens: Woman Standing on Red Flower Petals, Sean Justice; Feet in Sand on Beach, Burke

Comentários

Mariana disse…
enquanto isso a Marcia fica com os potes de requeijao? Sapato machuca, requeijao estraga...esta vida não é facil, não...e espero que nao exista muita coisa contra cabelos crespos...rsrs Um beijo querida!
Mais uma bela analogia, Ana. Parabéns!
Anônimo disse…
Antes do encontro do que calça, se perceber no próprio formato... humano.

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