O PASSADO VISITA O NATAL DO VELHO PADRE E DO GATO PRETO >> Zoraya Cesar


Passado? Presente? Futuro? Isso existe? 

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O lugar

Era uma rua perdida. Perdida no tempo, no espaço, no google maps. Mas quem precisava de ajuda acabava por encontrá-la, meio sem saber como.

E nessa rua havia uma igreja. Uma igrejinha, melhor dizendo, pois era delicada, antiga, convidativa. Havia dois anjos de asas enormes entalhados na porta, que permanecia sempre aberta.

Embora as janelas estivessem fechadas, uma brisa alegre refrescava seu interior. E no fundo do silêncio, um som longínquo e delicado de sinos. Mas não havia caixas de som ou sinos em qualquer lugar. Não me perguntem como isso é possível, essas coisas não se explicam. A luz que entrava pelos vitrais multicoloria todo o ambiente, dando-lhe uma aparência festiva.

Era realmente um lugar estranho, aquela igreja.

Mas não menos estranho que seus habitantes.

Os habitantes

Um gato preto. Os mais supersticiosos poderiam estranhar. Ainda mais se soubessem que ele dormia enroscado no colo de Nossa Senhora, que gostava de receber visitantes e dar patadas vigorosas nas ovelhas e galinhas que insistiam em sair do presépio. E de colocar demônios no seu devido lugar. Tinha muitos mistérios além das aparências, ele, o Gato Preto.

Um padre velho. Sua idade era indefinível. Ninguém sabia de onde viera, nem mesmo para onde iria quando a Dama de Branco batesse à porta. Até porque os dois costumavam sentar juntos para um chá de vez em quando. Uma batina surrada e simples cobria seu corpo miúdo e franzino, do qual  emanava uma força poderosa, quase sobre-humana. Já vira muita coisa, o Velho Padre, já lutara muitas batalhas, já chorara muitas perdas. E, no entanto, impossível encontrar alguém mais cheio de Fé e alegria..

Eram realmente estranhos os habitantes daquela igreja.

Mas não menos estranhos que os visitantes daquele ano.

Aparição 1 – O Reencontro

Tinha os cabelos cacheados ruivo-beterraba, pele bronzeada, olhos pretos inescrutáveis. E uma esquisita e grossa marca amarronzada em torno do pescoço. 

A mulher hesitou. Seria ali mesmo? Ela mal interpretara os sonhos? E se fosse expulsa? Então ouviu um miado familiar. Ela podia estar na dúvida, mas o Gato Preto a reconhecera imediatamente, sua companheira de tantas encarnações atrás, Adma, a que escapou da forca.

Pulou no colo dela, que chorava de alegria. Agora sim, sabia que estava no lugar certo. E o Velho Padre, seu anjo, que impedira que ela morresse enforcada numa perseguição às bruxas? Onde estava ele?

Na cozinha, atarefadíssimo, ajudando Santa Margarida da Escócia a fazer um cranachan de jabuticaba1.

Adma tremia de emoção. Depois de tantos séculos conseguira reencarnar no mesmo tempo espaço que o homem que a livrara de uma morte horrível e dera um lar para seu gato.

Ajoelhou e beijou as mãos sujas de farinha do seu salvador.

O Velho Padre, na sua humildade, disse que não fez nada de mais, e que ela estar ali era recompensa


mais que suficiente. E lembrou que o Salvador não era ele, mas estava na outra sala, com Nossa Senhora. Adma não gostaria de vê-los?

Aparição 2 – A entidade

Vestia-se com elegância antiga, terno e sapatos imaculadamente brancos, chapéu panamá com fita de cetim vermelha. Usava uma bengala como mero enfeite, e seu olhar sestroso não deixava dúvidas que aquele dândi podia ser bastante perigoso.

Parou, hesitante, à porta da igreja, respeitoso, como que esperando permissão. E se não o deixassem entrar? Aguardou.

Mas não por muito tempo.

Os anjos entalhados saíram da porta, abraçaram o homem. Como assim, Seu Zé? Desde quando você não é bem-vindo à casa do Velho Padre? Entre! A casa é sua, amigo. O homem se emocionou. Nesses tempos evangélicos em que ele era cada vez mais malvisto, expulso, humilhado, era um alívio ser acolhido.

O Exu das noites, Seu Zé Pilintra entrou, o coração em êxtase, seu sorriso iluminando tudo ao redor.

Estava ali para agradecer ao Velho Padre, que o salvara da danação eterna, ao evitar que morresse amargurado e vingativo. Sem ele, teria desencarnado como espírito trevoso e não como um dos mais procurados guias espirituais de luz, a proteger quem lhe pedisse ajuda. E muitas vezes o Velho Padre deixava o Gato Preto acompanhá-lo em algumas missões mais espinhosas.

De novo, o Velho Padre disse que o único Salvador estava na outra sala, com Maria, José e outros convidados. E deu ao Exu um copinho de cachaça, das boas, amigo, das Minas Gerais, que um fiel trouxe outro dia mesmo.

Aparição 3, 4, 5...

Ao longo do dia, fantasmas, entidades, mortais e outros seres apareceram para agradecer ao Velho Padre (e ao Gato Preto, devorador de demônios). E a todos ele direcionava ao verdadeiro Salvador. Ele, Velho Padre, era apenas um instrumento.

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Comidas, bebidas, oferendas e afetos circulavam em profusão. Uma infinidade de estrelinhas multicoloridas dançava em correntes invisíveis de amor e um coral de fadas, fadinhas, bem pequeninas, cantava a melodia das esferas, para o encantamento dos corações.

Adma deu ao Menino uma manta de patchwork cheia de símbolos sagrados que ela mesma fizera. É muito frio no Hemisfério Norte nessa época do ano, explicara. Nossa Senhora gostou imensamente do presente e ficaram as duas a conversar, para infinita felicidade da bruxa, tão devota à Grande Mãe Maria.

Seu Zé, depois de reverenciar Nossa Senhora profundamente, de todo coração, ofertou uma navalha a São José, para usar na carpintaria, se achasse conveniente, ressalvou, com medo de parecer presunçoso. São José sorriu e começou entalhar a bengala do Exu, que, de absoluto contentamento, dançou  pelo salão com o Menino no colo, e as risadas deles dois eram tão alegres e puras, que o mundo lá fora ficou um pouco melhor por aqueles instantes.

Festas de aniversário são as preferidas  

O Velho Padre flutuava de felicidade. Realmente, festas de aniversário eram as suas preferidas!

O Gato Preto, confortavelmente instalado no colo da bruxa, analisando os acontecimentos do dia, filosofava que o tempo é cíclico e que a bondade transcendia tempos, espaços, encarnações. Há muitas vidas estava com o Velho Padre. E com ele ficaria até o momento de partirem. No momento, entretanto, tinha de concordar com seu amigo: festas de aniversário eram as melhores!


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 As aventuras do Velho Padre e do Gato Preto ao longo dos anos

O passado visita o Natal do Velho Padre e do Gato Preto - 2023



 




Comentários

branco disse…
Muito interessante essa mistura religiosa. Se não fosse escrito por mais hábeis poderia parecer heresia. Mas não parece.
Marcio disse…
Natal é tempo de crônica do Velho Padre. E do Gato Preto, claro.
Eu sempre adoro.
Obrigado, Zpraya!
Marcio disse…
Epa, não é Zpraya! É Zoraya, teclado estúpido!
Esse é o resultado obtido quando o leitor resolve usar o celular para postar seu comentário logo depois de ler a crônica da Zoraya.
Ainda bem que eu ainda posso argumentar que "o" e "p" são vizinhos de teclado.
Com alguma sorte, Lady Killer vai perdoar esse deslize meu, e a pena capital será substituída por apenas mais uma avacalhação daquele meu alter ego que protagoniza algumas aventuras ridículas do universo literário zorayacesariano.
Leila disse…
Que felicidade ler essa crônica e ver tanta gratidão envolvendo uma profusão de entidades! Quanta delicadeza! Mas não esperava outra coisa dessa Zoraya que é dândi🥰 E eu espero degustar esse cranachan de jabiticaba neste Natal!😉
Obrigada pelo presente dessa literatura zorayacesariano😘
Albir disse…
Eu que me viciei nas suas mortes tenebrosas durante todo o ano, também já não posso ficar sem a leveza e ternura do velho padre.
Feliz Natal e um ano novo à altura da sua escrita.
Bjs
Jander Minesso disse…
Se Deuses Americanos fosse um livro um pouco mais bem-humorado, essa história estaria lá. Sempre uma delícia ler suas misturas do místico com o prosaico, Zoraya!
Érica disse…
Essa foi uma crônica de fim de ano completíssima! Teve até receita! No próximo ano melhor você arranjar uma receita diet. Essa tinha muito açúcar kkk... Mas tudo bem... acho que era pra combinar com a crônica docinha e levinha rsrs. Pelo menos fechou o ano de forma light, sem a sanguinolência de praxe kkk
Anônimo disse…
Cranachan e Irish Coffee têm aquele destilado como ingrediente comum. Hum! Não sou de beber, mas acho que cai bem na culinária. Boa história! Sempre com aqueles ingredientes clássicos, as suas histórias. Aqueles destilados característicos. André Ferrer aqui.

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