O TEMPO E O MEDO >> Ana Raja


Estamos envelhecendo, e a sensação que me toma é de que o tempo não se arrasta mais como na minha infância. Ele voa, aprendeu a se distanciar com asas eufóricas. Adoro falar do tempo, escrever sobre esse danado que teima em brigar comigo.

Participei de uma oficina em que o exercício era escrever uma carta ao tempo e a resposta dele para ela. Qualquer dia, eu o publicarei aqui para vocês conferirem como a briga é feroz. 

Venho pensando muito no tempo da idade, especialmente em relação às mulheres. Há um toque de crueldade dele estampado na pele delas, assim como na mobilidade, na cognição e nos músculos, nos órgãos. Sim, eles também envelhecem, e isso faz parte do esmorecer.

Quando se trata de mulheres, creio haver privilégios na fase do envelhecimento do corpo, porque a experiência é aprimorada, não envelhece. Por exemplo, a opinião dos outros passa a não fazer valer tanto para muitas de nós. Realizamos sonhos, não só aqueles que tiveram de ser resgatados do passado, mas também os brotados no agora. Amamos e escolhemos a quem não amar. Viajamos sozinhas, em grupos de amigas geniais. Diminuir o nosso círculo social ou migrarmos para outros é uma consequência de envelhecer se respeitando. É uma conquista e tanto, e essa virada de página leva tempo.

Há muitas mulheres de setenta, oitenta anos comprometidas com as suas próprias vidas. Estudam, encerram um casamento de mais de quarenta anos, moram sozinhas, cuidam das finanças e do seu bem-estar.  

Eu sei que o envelhecer chega diferente para cada mulher. Muitas chegam ao fim da vida ainda no papel de arrimo da família, sem nunca terem gastado tempo com elas mesmas, ou pior, abandonadas pelos seus. 

Enfrentamos adversidades em todas as fases das nossas vidas. Entre os desafios desastrosos: palavras desferidas por insensíveis, que julgam para ofender e magoar. Como erram ao apontar o dedo para uma mulher! Desvalorizam os sentimentos e a história vivida por aquela pessoa. Quem anda armado desse fel sai por aí destilando asneiras e minando o brilho de uma mulher comprometida com a sua própria vida. 

Essas mulheres têm grandes chances de dominar o mundo. A ciência tem nos permitido viver mais. Por isso, assustamos alguns desavisados que escolhem nos corresponder com violência.

Ao expor suas intenções amorosas, a mulher experiente corre um grande risco de escutar, se for um homem o escolhido, que a “coitada” (adjetivo enraizado no pensamento do pretendente) está velha para ele, e que jamais se envolveria com alguém com a mesma idade de sua mãe. Patético e ridículo. Convenhamos, né? Esse tipo não merece ouvir de uma mulher sobre o afeto dela por ele. Além do mais, ela pode querer apenas alguns momentos agradáveis com alguém, e, tipos desses, raramente são capazes de proporcionar qualquer consideração. Ele está acostumado a chegar junto, deixar claro que as regras são dele, e, lógico, o seu jeito pavão vai se revelar para uma jovem.  Afinal, as que podem escolher, e escolhem, pertencem a um grupo de mulheres experientes com as quais homens desse naipe não são capazes de lidar.  

Não creio na melhor idade. Podemos envelhecer com alguma boa sorte e a genética favorável. Na questão do tempo, temos como nos respeitar, o que não acontece quando o outro decide que você é uma propriedade.

Há desfechos horripilantes, alheios às escolhas e decisões das mulheres. Sim, é possível envelhecermos com graça e autossuficiência, se não formos mortas e nossos corpos – ainda mornos, jazendo sobre uma maca de necropsia – serem profanados por homens medonhos. É triste constatar que até mortas corremos perigo.

Vocês souberam disso?

Voltarei a esse assunto em outro momento, talvez quando o meu estômago não estiver embrulhado. Por enquanto, fica aqui a minha indignação.

Nos deixem em paz. Vivas ou mortas.


Imagem © Albert-Paul, por Pixabay

anaraja.com.br

Comentários

Soraya Jordão disse…
Como de costume, imperdível e adorável.
Ana Paula Gasparini disse…
Belo texto para reflexão e inspiração, Ana! Que saibamos fazer do tempo, que tanto tememos, aliado nosso!
Que nossas histórias de vida possam melhorar nossas capacidades de escolha. E acolhimento a nós mesmas!
Luciana G. disse…
Perfeito! Me vejo em alguns trechos minha amiga, te amo!
Ana Helena Reis disse…
Ana querida, seu texto ficou tão bonito! me vi ali representada, na luta interior que nós, mulheres maduras plus, como costumo dizer, travam com sua própria identidade - envelhecer sem se tornar invisível aos olhos dos outros tem que vir de dentro para fora, a primeira etapa tem que ser vencida por nós mesmas, pela forma como nós nos vemos, pelo rumo que damos a essa fase da vida, não é?
Albir disse…
Perfeito, Ana!
As conquistas são demoradas, mas são sólidas. Não tem retorno quando a mulher atinge essa maturidade. Mas as ameaças continuam!
Jander Minesso disse…
Mais uma aula, Ana.
E sei que toda generalização é burra, mas me parece que em geral vocês têm uma inteligência emocional e uma sabedoria muito maiores. Me faz pensar se as atrocidades históricas cometidas contra as mulheres não foram (são?) movidas por pura inveja.

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