COLECIONADOS >> Carla Dias


É uma coisa, um badulaque, um utensilio de acessar memórias. Sempre foi de colecionar coisas-lembranças, uma série de acumulados físicos e virtuais, visitados capazes de despertar as melhores histórias de tristezas inspiradoras de decisões impulsionadoras de mudanças encalhadas. Acredita no existir como um vestir-se de palavras, inebriar-se por cheiros de terra de lugares nos quais jamais colocou os pés, colher toques das mãos do vento e conquistas platônicas.

Quem encosta o olhar na realidade dela não tira muito dessa espiadela, não. Os olhares tropeçam na sua figura para se esborracharem um pouco mais adiante, em qualquer objeto ou sujeito que preenche a vista com o escandalosamente diferente, o silenciosamente significativo, o indiscretamente cáustico, o obscenamente medíocre. A questão está no dilacerante, na taquicardia do imediato, não se deita no corpo do tempo para alimentar observação, como a dita gosta de fazer: perder-se no pode ser. 

Existe aninhada entre os dentes da janela — da alma, como a poesia gosta de tentar enganar realistas; e dos conflitos, sala de estar dos sofredores burocratas. No entanto, a criatura sabe navegar por labirintos como poucos indivíduos são capazes de fazer. É quase um desfilar de tropeços coreografados para evitar tombos. E quando é impossível não se entregar a eles, encontrar o chão é feito pausa na gritaria da necessidade.

Entre os colecionados, segredos para negociar soltura de impropérios nos dias de se misturar às outras criaturas. Compreende ser fundamental controlar a impaciência ao lidar com a pressa delas, porque é mais fácil viver a urgência, não a morosidade antecessora de algumas descobertas que valem ser incluídas na prateleira das lembranças. 

Anda necessitada de relembrar, contanto que a memória evocada seja de fazer a pele despertar em arrepios. Precisa reconhecer, vez em quando, a existência de corpo no qual habita seu espírito, porque tem horror à possibilidade de se descobrir criatura imaginada, um desabafo da imaginação de outro ser.

Imagem © Mystic Art Design, por Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Me lembrou uma frase clássica do meu pai: “saudade é o presente de alegrias passadas.” Mas também me fez pensar em quem existe sem viver, andando por aí no piloto automático. Eu gosto como a sutileza do texto é a mesma da percepção da protagonista. E de repente, aqui estou de novo, dissecando o texto como se ele fosse um sapo na aula de biologia. Melhor parar. Mui bela construção, Carlandreia.
Albir disse…
Que beleza, Carla!
Que 2024 traga saúde, paz, felicidade emails dos seus textos!
Beijos

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