NÃO PRECISAM MAIS DE MIM - III >> Albir José Inácio da Silva

 

(Continuação de 18 de setembro de 2023)

 

Mas a Europa estava ficando pequena para nossos empreendimentos. Fomos para as colônias salvar os bugres adoradores de deuses proibidos, entidades estranhas, lua, sol, rio e montanha.  Lá, com a força da espada e da pólvora, conseguimos trazê-los para o lado do bem.

 

E como pagamento pela salvação, trouxemos milhões de salvos para trabalhar em nossas lavouras, minas e palácios. Ou seja, eu continuava no controle.

 

Nas terras do Novo Mundo, além do massacre e da escravidão em nome de Deus – por estratégia, meus seguidores sempre atribuem essas obras ao meu adversário, - pudemos impor a nossa fé aos colonizados.

 

Duas hipóteses justificaram o extermínio e o cativeiro: os nativos não tinham almas, logo podiam ser mortos ou escravizados como bichos, ou tinham almas que precisavam ser adestradas e salvas do inferno pela verdadeira e única religião.

 

Para provar que nada havia mudado com a reforma, puritanos da cidade de Salém, Massachusetts, promoveram o enforcamento de dezenas de mulheres acusadas de bruxaria, no melhor estilo da Santa Inquisição.

  

Foi assim que me espalhei pelas Américas. Durante quatro séculos, traficamos das colônias africanas para as americanas milhões de escravos e assassinamos milhões de nativos para roubar suas terras, seu ouro e sua história. Esse foi o nosso melhor investimento, embora sem descuidar das guerras na Europa nem dos massacres no resto do mundo.

 

Chegamos ao século XX garantindo que era natural a superioridade de algumas raças e a desigualdade dos patrimônios. Por esse tempo, um certo Adolf foi nosso mais brilhante agente. Se um dia me aposentar, vou indicá-lo para me substituir.

 

Ele mandou para as câmaras de gás milhões de judeus, ciganos, comunistas, padres, deficientes e outros desafetos. Seus tanques destruíram nações e devastaram cidades. Foi considerado o novo messias pelos seguidores.

Com novas armas, aviões e submarinos, a humanidade quase se exterminou com duas grandes guerras mundiais. Os nossos foram julgados e mortos em tribunais de exceção e tivemos de recuar por algumas décadas. Mas já estamos nos rearticulando. Há outros campos prontos para a semeadura.

 

Agora estou no Pico da Neblina, ponto culminante do Brasil na paradisíaca Amazônia, e vejo um país continental. Tenho muita esperança nesta gente porque aqui as armas se juntaram à fé, nos últimos anos, num casamento perfeito.

 

Eu Já trouxe para este mirante líderes religiosos e políticos que aceitaram prontamente as minhas ofertas de poder e riqueza, aviões, carros de luxo e mansões. Muito diferentes daquele judeu periférico e crucificado de dois mil anos atrás, que ensinava: “Vai, vende todos os teus bens e distribui o dinheiro com os pobres”.

 

A nova ordem é “Vai, vende todos os teus bens e entrega o dinheiro para o sacerdote”. Agora prosperidade é sinônimo de abençoado por Deus, bens acumulados são prova de santidade e os juros são sagrados.

 

Na década de 60 tivemos problemas quando surgiu por aqui uma tal de Teologia da Libertação, que pregava a libertação dos oprimidos. Felizmente fomos salvos pela farda com Deus pela família e pela liberdade, que rasgou a Constituição democrática de 1946 e impôs uma ditadura por 21 anos.

 

Esse negócio de democracia é muito ruim, a massa ignara é difícil de controlar, reclama demais, muda de opinião a toda hora. O regime dos sonhos é a ditadura confessional, a teocracia, porque basta trazer os sacerdotes que o povo vem atrás.

 

No final dos anos 80 amargamos novo retrocesso com uma constituição democrática que quase desmontou nossos projetos. Mas não esmorecemos, partimos para novas conquistas. Hoje a igreja tem partido político, e dominamos o Congresso com uma bancada fundamentalista que já alcançou isenção de impostos, perdão de dívidas, indicação para ministérios e para a corte suprema.

 

Mas a guerra continua. A guerra santa!

 

Primeira parte: http://www.cronicadodia.com.br/2023/09/nao-precisam-mais-de-mim-i-albir-jose.html


Segunda parte: http://www.cronicadodia.com.br/2023/09/nao-precisam-mais-de-mim-ii-albir-jose.html


(Continua em 16 de outubro de 2023)

Comentários

Jander Minesso disse…
Oooopa! Agora, o narrador assinou a autoria. Como sempre, sigo aguardando os próximos capítulos dessa cruzada, Albir!
Zoraya Cesar disse…
Ahhhhh, obrigada por ter colocado os links, Dom Albir!! Foi ótimo ler tudo de novo com o novo e de uma tacada só! A todo instante estou esperando a assinatura do Demo! Bom demais!
Nadia Coldebella disse…
Melhor que excelente! Agora é que eu quero ver...
Ah eu tinha lido só a parte 1, que acabo de reler, seguida das partes 2 e 3, foi muito bom você ter colocado os links aqui. Estou adorando esta história da humanidade pela perspectiva do diabo, apesar de que me dá certa tristeza pensar no caminhar tortuoso dessa nossa espécie…
Albir disse…
Obrigado, Jander, Zoraya, Nádia e Alfonsina, pelo carinho de sua leitura.

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