O ESTABELECIMENTO >> Carla Dias



Não sabe definir o que vem sentindo nas últimas semanas. Vontade de fechar a porta do estabelecimento e decretar falência, assumir fracasso. Só não o fez ainda por conta de um fio de eletricidade que impulsiona seu corpo a manter o movimento. Disseram que é esperança, mas ele acredita que seja apenas teimosia ou talvez uma raspa de instinto de sobrevivência.

Aprendeu o ofício com o primo, que acompanhou seu aprendizado. Dedicou-se a aperfeiçoá-lo, encarando anos de pesquisas e autoanálise. Aprendeu, por exemplo, que havia nele energia suficiente para lidar com as situações mais escabrosas, até ser possível resolver o problema do outro, ou ao menos ajudá-lo a encontrar a solução.

O primo lhe perdoaria a incapacidade, ele sabe disso. Sempre foi mais gentil consigo do que ele. Vive a falar sobre a habilidade de compreender o que está fora do alcance e aceitar essa condição. Mas ele escolheu ir além, porque desejava ser um dos melhores no que fazia.

Talvez ignorar o conselho do primo tenha colaborado com o que sente agora. Pensa não haver outro jeito, está quase apto a reconhecer sua incapacidade de atender a necessidade do outro. A nostalgia o toma: o sorriso. Viciou-se no sorriso deles, aquele que minava de seus lábios logo depois de serem agraciados com seus serviços.

Parado na porta, olhos encarando os pés, como se eles tivessem vontade própria e lhe negassem o próximo passo. Seu corpo implora para que volte para a cama, ele luta contra, usando aquele fio de eletricidade que agita seus sentidos quando está prestes a se render.

Não consegue ir muito longe. Alguns passos, então se senta na escada e observa o movimento da rua. As pessoas levam suas vidas como se nada acontecesse, ao que ele é grato, pois não se trata de indiferença, ao menos não para a maioria, mas de sobrevivência. Se também elas tivessem de sentir o que ele sente, o mundo estaria mais perto do fim. Não que esteja muito longe dele, mas se todos se rendessem ao que pesa em seu coração, teriam de fechar o estabelecimento. Não haveria clientes. 

Sente-se vazio de quem estava habituado a ser. Quando olha para as pessoas, não enxerga mais possibilidades, espaço para atuar e colaborar com elas. O primo vem insistindo para que ele reconheça a própria impotência, assim terá chance de sobreviver a si mesmo, porque “você não é Deus!” 

Reconhece a agonia: ter de sobreviver em vez de viver; seguir incapaz de dizer às pessoas o que elas precisam escutar, já que ele mesmo enterrou a esperança nos acontecimentos. O mundo se contorceu e ele não consegue mais se ajustar a sua forma, compreender as suas camadas. Todo seu conhecimento se mostrou vão diante da realidade.

Uma voz aguda o arranca da divagação. 

- O senhor deixou cair!

Recolhe a maleta esparramada no chão e a encaixa nas mãos dele. O sorriso do menino tem frescor pouco visto ultimamente. Não consegue sorrir de volta, mas acena, com a cabeça, um agradecimento murcho.

- Até daqui a pouco, padre!  A gente se vê na missa!

O menino sai correndo, como se tudo estivesse em ordem. O primo exigiu que ele parasse de assistir aos telejornais, que se dedicasse aos caminhos de Deus, mas ele não consegue evitar. E assistindo ao mundo se desfazendo, alimenta a certeza da sua insignificância. 

Hora de fechar o estabelecimento. Que Deus cuide de seus clientes.   

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Imagem © Obra de Wassily Kandinsky 


carladias.com.br

Comentários

Milton Rezende disse…

texto forte e lindo ao mesmo tempo, se é que isso é possível.
Zoraya Cesar disse…
Carla, que belíssimo e pungente texto esse seu. A gente vai se agoniando, sentindo a angústia do personagem, a sua dor, seu desalento. Quem lida com o humano, hoje em dia, está desanimando, nao consegue mais ver Deus nas pessoas. Amei tanto esse personagem, que me deu vontade de abraçá-lo, não vá embora, por favor, precisamos de voc~e.

Mais um Carla Dias em excelência.
Jander Minesso disse…
E eu, crente de que era um terapeuta. Mas até que é, não?
Texto lindão e que ecoou mais ainda aqui dentro porque botaste um belo de um Wassily pea ilustrar.
Albir disse…
Que maravilha, Carla!
Sem surpresa, mas encantado!

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