OCEANOS >> Carla Dias


Quando se perde na própria mente, reacende memórias, sai catando planos descartados, revira as gavetas dos escondidos, pensa em oceanos. Apaixonou-se por eles.

Quando se perde, veste-se com roupas que contam histórias, feito a camisa herdada do tio que não conheceu, mas sobre quem adorava escutar os familiares falarem. Os primos acreditavam que o tio era mulherengo, apreciador de desonrar lares, que se divertia com o fim deles e com a solidão que instalava na alma de suas amantes... e de seus amantes. As irmãs o achavam canastrão, incapaz de dizer uma frase completa sem recorrer aos palavrões. Tinham horror ao hábito dele de gargalhar toda vez que anunciavam uma morte em família. Depois comentava — pedindo desculpas insinceras pela interrupção da tristeza contundida durante esgares rigorosos de pesar — sobre a morte ser talentosa instigadora de reuniões de família e juntamento de todas as versões da vida do morto, vítima da presença deles. Às vezes, diziam, ele achava isso bonito de se ver, em outras, trágico, e, quase sempre, divertido. A mãe não se preocupava, para ela, o filho era um galanteador de diferentes, e não havia pecado nisso, porque ninguém deveria viver hasteando a bandeira do estável por ostracismo. 

Quando o tio se mudou para lá do oceano, ele ainda era de colo. Havia muita distância para atravessar até acontecer visita, e seus pais nunca se animaram com a aventura. Foi assim que o tio se tornou, de vez, a melhor companhia do menino. Uma companhia forjada na ausência.

Quando não falavam sobre o tio, durante os encontros de sábado à tarde, na chácara de seus avós, enfiava-se no quarto do retirante, “do jeito que ele deixou”, a avó repetia, toda vez que lhe entregava a chave do cômodo. Não era de grandes folias. Gostava de ficar em paz, raramente participava das brincadeiras com as outras crianças. Ela entendeu isso e não quis mudá-lo.

No quarto do tio, aprendeu que mapa-múndi rendia viagem, bastava se deixar levar; e que, na marcenaria, aprendia-se também a complexidade de defender beleza furtiva. E que discos de rock’n roll eram boas companhias, na saúde e na doença. 

Anos depois, devolveram o tio para seu quarto. O sobrinho teve de desocupar o lugar da própria presença e depois ir embora. A avó não queria testemunha para o retorno do filho. Ela achou estranho, mas não quis mudá-la.

Todos continuaram com a rotina do aos sábados, exceto ele. Não podia se embrenhar no quarto do tio, vasculhar seus livros, imaginar suas aventuras. Também não permitiam que ele fizesse algo que desejava há anos: conhecer a pessoa que lhe ensinava tanto, mesmo sem nunca terem trocado olhar, nem abraço, nem informações de bastidores das festas de aniversário da família.

Nunca o vira, não havia fotos dele pela casa. Havia, sim, uma proibição jamais verbalizada, mas severamente estabelecida, de não se fazer determinadas perguntas.

Durante cinco anos, o tio esteve lá sem realmente estar. Ele encarou a porta do quarto por mais tempo do que gastara assistindo filmes cult, mas não lhe permitiram. A chave do quarto que lhe rendera a liberdade da mente, do coração, da imaginação, agora trancava naquele cômodo a pessoa mais importante de sua história. 

Havia uma pausa contínua morando naquele quarto. O que ele fizera com os discos?

Rebelou-se, exigindo conhecer o tio, porque era o único que não tinha história vivida com ele para contar. Foi ignorado, com tal maestria, que seu coração se partiu em pedaços miúdos, e então, arrebentou-se na distância. Mudou-se para perto de um oceano.

*** 

Nem lhe deram boas-vindas, elas não cabiam no evento. Beijou as faces quentes da avó e ela o puxou para um abraço com tendência à eternidade. Reconheceu a camiseta que ela dera a ele, no dia de sua mudança de país. Ele queria algo do tio, ela providenciou, mas não o deixou espiá-lo de longe.  Ela ria miúdo e chorava ao mesmo tempo. Ele a abraçou com seu abraço de mergulhar em oceano, e logo caminhou até o quarto de porta e janelas arreganhadas. 

Aproximou-se, segurou a mão desmaiada dele e se apresentou. Não achou bonito de se ver, talvez um pouco trágico, mas nada divertido. Ansiava por aprender a cor de sua voz, a ranhura de sua identidade, mas o tio ofereceu o que tinha: o silêncio irrevogável.

Imagem © 愚木混株 Cdd20, por Pixabay

carladias.com.br


Comentários

Soraya Jordão disse…
Havia uma pausa contínua morando naquele quarto. Adorei seu texto. Li frases que ainda ressoam. Essa é uma delas.
Jander Minesso disse…
Acho que uma das suas maiores habilidades é saber o que não escrever, Carlandreia. Que bela história.
Zoraya Cesar disse…
"Havia uma pausa contínua morando naquele quarto", mais uma frase impressionante de D. Carla Dias, a Princesa das Palavras, náo à toa. Uma viagem por duas vidas, simultaneamente, paralelas e próximas. O segredo. Carla, esse é dos bons entre os bons!
Albir disse…
As vontades, as incertezas, as frustrações do humano coração. Mais uma viagem na arte de Carla Dias.
Nadia Coldebella disse…
Que texto lindo e forte! Sempre esteve presente a presença de quem sempre faltou! O q completou o menino, o tio ou a ideia q tinha dele? O título também é perfeito, o plural: os oceanos que nos separam, os nossos e os do mundo. Lindo!

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