MORTE E VIDA >> André Ferrer
A filha morava numa cidade vizinha onde estudava. Quatro meses desde a última visita. O homem sentou-se comodamente, mas o ônibus da moça surgiu e começou a cruzar o pátio que se transformava nas raias de embarque e desembarque.
Tudo bem. Restava um minuto. Verificara as redondezas: nem sinal de amigo, compadre ou parente. Então, ele decidiu manter a naturalidade. Curvou o pescoço. Apanhou o telefone. Aquietou-se. Enquanto crescia, o ruído do motor causava um encolhimento no homem.
Como um avestruz, enfiou-se no sumidouro do smartphone. Pedalou a tela com os dedos. Leu a manchete sobre um fulano que, primeiro, tinha morrido; depois, estava vivo; e, finalmente, morreu de fato.
Uma mosca bateu entre os lábios do homem, que apertou a boca e afugentou o bicho. Há pouco, no botequim, uma tinha caído no pingado de um desconhecido. O infeliz bebeu a mosca num trago. Tudo bem. Muito normal, pensou. É comum que as pessoas olhem e nada vejam.
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De onde tinha parado, esforçava-se na leitura, mas o ambiente intrometia-se. Ruídos cada vez mais alarmantes tomavam o terminal. À distância, alguém disse olá. O motor parou num soluço. Abriu-se a porta do ônibus.
Tudo bem. Um segundinho, pensou. Repugnava a ideia de aparecer um amigo, um compadre, um primo. Então, reapareceu a postura do avestruz. Na tela, os dedos trêmulos tinham voltado à manchete:
“Morre homem levado à funerária com vida.”
Quando ergueu os olhos, todos estavam fora do ônibus. Aguardavam o funcionário que orientava uma espera ordeira. Entre inquieto e cisudo, ele distribuía as malas do bagageiro. A filha estava entre eles. A barriga dela seria de seis ou sete meses.
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