Histórias do meu pai: morto-vivo >>> Nádia Coldebella

Domingo sim, domingo não, meu pai me contava uma história daquelas, que ele jurava ser verdadeira. Ele era bem incisivo nisso, então quem sou eu para duvidar? Confesso que gosto de escrever esses “causos”, mas aviso desde agora que apenas reconto, dando uma mexida aqui e outra ali, para fazer o enredo ficar mais literário. (Espero que não se incomode o leitor em eu trazer mais uma história sinistra - ou quase.) 

Certa vez, em plena década de oitenta, meu pai era um jovem senhor, na casa dos trinta anos, conversador e muito bem informado. Foi assim que ele ficou sabendo que, em uma cidade vizinha, um terrível acidente de carro havia acontecido. Acidentes de carro eram uma novidade que se espalhava muito rápido naquela época, ainda mais quando os mortos eram da capital. 

E foi exatamente assim que aconteceu. O morto era curitibano, o que significava que, feito os trâmites necessários, precisaria ser transportado para Curitiba. A família, toda preocupada, contratou os serviços de uma funerária da capital. Motorista e ajudante viajariam durante a noite, até o extremo oeste do Paraná, para buscar o defunto e levá-lo ao destino de seu descanso eterno.

Serviço contratado, motorista e ajudante cuidaram da documentação e tudo o mais que era necessário para a viagem, que ocorreria logo após o fim do expediente. Enquanto terminavam de resolver o último morto, bateu à porta do estabelecimento funerário um senhor estranhamente bem apessoado. Tinha um rosto fino com maçãs proeminentes, bochechas um tanto chupadas para dentro, nariz aquilino e queixo bem quadrado. Os olhos, meio sem viço, eram emoldurados por sobrancelhas desalinhadas que quase pareciam uma só com o cabelo comprido demais. As mãos estavam ossudas e as unhas eram grandes, descuidadas e já haviam passado várias semanas do ponto de serem cortadas. Um tanto pálido, bem magro e alto, ele vestia um terno preto muito bem cortado, porém um tanto amassado.

Acostumado com muitos cadáveres, o motorista, que também era dono do estabelecimento funerário, mostrou-se um pouco desconfortável com a visão de um homem que parecia o mordomo da família Adams, só que em menor proporção. Foi logo tomado de compaixão, quando notou que ele estava ciente do desconforto que causava.

Chamava-se José - eu invento o nome aqui por falta de informação - e tinha migrado para a capital procurando melhor condição de vida.

- Dei com os burros n’água, piá - disse José, enxugando as lágrimas - Tô longe da minha família, passei fome, durmo em qualquer canto que me oferecem e nem tenho dinheiro pra voltar pra casa. - O homem fungou de novo.

José estava fazendo uns bicos no prédio da família do morto, quando ouviu a história da contratação do carro funerário contada pela madame ao porteiro.

- Se não fosse esse terno, ninguém me dava trabalho não. Olha pro meu estado! - Ele botou a mão na barriga, ressaltando o aspecto cadavérico das costelas.

Foi o porteiro, com dó de José, que o mandou falar com o motorista da funerária, que a esta altura já estava decidido a ajudar a pobre e desmilinguida criatura. 

- Seu José, é verdade que o nosso morto está na cidade em que o senhor quer ir e eu não vejo problema de o senhor ir com a gente - José abriu o primeiro sorriso daquele dia. - Só tem um poremzinho. Vem aqui.

Os dois entraram na funerária e seguiram até o local onde estava um grande rabecão preto. O motorista apontou: 

- Olha, só tenho dois lugares e meu ajudante vai junto.

Ele passou para a parte de trás do veículo e abriu as portas traseiras.

- Esse é o único lugar que temos - ele meio que se desculpava, envergonhado.

O único lugar tratava-se de um comprido e estreito caixão, feito da mais fina madeira marrom e com uma forração de cetim vermelha. Apesar do silêncio sepulcral do motorista, José não pareceu chocado.

- Não tem problema não. O senhor nem imagina os lugares em que já dormi! - José olhou para o ataúde e olhou pra si mesmo, como se se medisse.- Posso olhar de perto? - O dono da funerária fez que sim com a cabeça e José entrou, deitando-se ao lado daquele negócio. Um negócio que parecia muito macio, muito confortável e bem caro - Eu caibo direitinho.

O desconforto do motorista voltou:

- Se pro senhor tá bom…

- Tá sim. Eu bem que preciso dormir - José era só sorrisos. - E eu vou pra casa. - Ele levantou-se do chão, arrumando o terno. - Se eu ficar aqui, homem, logo sou eu que vou precisar de um desses.

Questão resolvida, o motorista se ofereceu para passar na casa de José e pegar suas coisas. Mas José era um homem prevenido e apontou a malinha.

- Não tenho pouso, senhor. Sempre levo comigo.

A esta altura, já pareciam amigos de tempos antigos e o motorista convidou José para comer o lanche que sua senhora já estava preparando. O homem não se fez de rogado e encheu a barriga, comeu o quanto coube, porque fazia tempo que não comia e também porque não tinha ideia de quando iria comer de novo.

- Vai devagar, José - disse o motorista - a viagem é comprida e sem uma alma viva por quilômetros. Não dá pra ficar parando.

Tudo pronto, se dirigiram ao carro funerário. O ajudante já havia chegado e olhou surpreso para o patrão quando José entrou no caixão. Ele se remexeu um pouco, ajeitou o travesseiro, sentiu bem a forração e cruzou as mãos sobre o peito. Logo estava sereno, na cama confortável que parecia ter sido feita sob medida pra ele.

- Vamos levar ele pra casa - disse o motorista, novamente sem graça, só que agora diante do olhar espantado do ajudante. - E vamos pegar o outro.

E partiram. José, embalado pelo balanço do rabecão, logo fechou os olhos, mergulhado em um profundo descanso que há meses não tinha. Motorista e ajudante logo esqueceram do passageiro, concentrados que estavam na viagem.

Já era madrugada quando pararam em um posto de gasolina para abastecer o veículo. Os dois frentistas, ao ver o carro preto, pareceram ressabiados.

Aqui faço um parênteses. Nesse ponto da história, passei a ter certeza de que as pessoas reagem conforme suas crenças ou superstições e nunca conforme a realidade. Vejam, além de ressabiados, os frentistas passaram a brigar entre si, um empurrando ridiculamente o outro para ver quem iria atender o veículo. Se fossem dois adolescentes, eu entenderia, mas tratava-se, segundo meu pai, de dois homens feitos.

Diferente de mim, o motorista era mais paciente e parecia acostumado às caras medrosas que se aproximavam do carro. Estrategicamente, perguntou do clima e, demonstrando muita simpatia, soltou:

- Sabe quantos quilômetros faltam para Guaíra? Estamos vindo de Curitiba para buscar o falecido.

Então, tá, devem ter pensado os frentistas, aliviados. Imagino que eles logo descansaram em paz, envolvidos pela simpatia do motorista, que conduziu uma agradável e divertida conversa. Deixou os dois lá, contando piadas sobre defuntos, e foi tomar um cafezinho com o ajudante.

O mais debochado, ainda na onda da conversa, bateu na porta do rabecão:

- A mãe natureza chama! - gritou, logo se afastando, com a coragem de um cachorro pinscher zero, que late para o transeunte das grades do portão. 

O outro, meio irritado como a fanfarronice do colega, desafiou:

- Você só tem conversa, piá! - o primeiro frentista fez cara feia - Duvido você abrir a porta e ver o que tem aí dentro.



Dentro do carro, José acordou de mil anos de sono, sentindo a barriga contrair. Realmente a natureza chamava. Tinha mesmo comido demais, não estava mais acostumado. Abriu os olhos, tentando se localizar. Estava tudo escuro, mas escutou as vozes e percebeu que haviam parado. Então lentamente sentou-se no caixão, justamente quando a porta do carro era aberta e a luz amarelada do posto de gasolina incidia sobre seu rosto magro. Por alguns segundos, o olhar de dois homens, que ele pensou ser o motorista e o ajudante, pousaram sobre ele:

- A gente já chegou? - Perguntou José, confuso. Dali para a frente, ele não entendeu o que aconteceu, apenas ouviu os gritos.

O motorista já voltava para o carro, quando percebeu as portas abertas e viu os dois frentistas fugindo, um agarrando o outro em puro desespero, gritando ensandecidamente. José saia do carro, meio tonto de sono, meio encurvado e ajeitando o terno amassado. Parecia alheio a tudo o que acontecera, só queria saber onde era o banheiro.

Segundo meu pai soube, os frentistas nunca mais pisaram naquele posto de gasolina, nem para receber o salário do mês.

Eu, da minha parte, me encontro reflexiva ao terminar essa história. Sinceramente, apesar das minhas críticas aos imaturos trabalhadores, fico pensando se minha reação seria, em algum milímetro, diferente. Temo que não.

Comentários

Adorei o causo Nadia!! E como você conseguiu criar suspense e descrever tudo com tantos detalhes e atenção! Fiquei doida para saber o que iria acontecer e me senti dentro das cenas!
Ana Raja disse…
Como é bom ler um causo bem contado!
Jander Minesso disse…
Fazia muito tempo que eu não chorava de rir. A cena do José acordando é sensacional. Belíssimo causo!
Zoraya Cesar disse…
Aaahhhmei demais essa historinha que, no final das contas, é fofa! Teve lembranças de seu pai, teve solidariedade, teve bobeira, teve realidade... adorei!
Albir disse…
Nádia, confesso que o tema me assustou um pouco, mas você foi suave e divertida.
Desta vez acho que não preciso dobrar a medicação.
Nadia Coldebella disse…
Alfonsina. Muito obrigado. É interessante esse exercício de recontar o q foi contado várias vezes.

Ana, gentileza da sua parte. Foi uma história legitimamente roubada.

Jander, espero fazê-lo chorar de rir muitas vezes ainda.

Zozinha querida! Vc já entendeu que minha propensão ao cômico-bizarro é de família!

Meu caro Dom Albir. Estou há mais de 40 anos aprendendo formas diferenciadas de assusta-lo e aumentar sua medicação!

Muito obrigada pelos comentários. Papai agradece!

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