UMA CAÇADA ESPECIAL DO OUTRO LADO DA PORTA - 3ª e última parte >> Zoraya Cesar


Tudo o que o milionário Sr. Voin queria era uma aventura diferente de tudo o que havia vivido, por mais bizarra ou cruel que fosse. E conseguiu ser convidado para um clube de caça muito particular, em que criaturas fantásticas eram capturadas ou mortas por pura diversão. 


Ao ouvir o click da porta fechando às suas costas, o Sr. Voin sentiu o estilete gelado da inevitabilidade subindo por sua espinha. A sanha pela caçada, no entanto, suplantou qualquer receio, não ia agir como uma donzelinha, admoestou-se. Já cacei javalis! Não vou amarelar na frente desse idiota sorridente. 

Armin tinha uma cara larga e achatada, os olhos redondos de um suíno, os dentes ultrabrancos das celebridades televisivas, e uma calva reluzente e avermelhada que ele tentava cobrir com os cabelos restantes. Mas o Sr. Voin sabia que aquela aparência inofensiva escondia uma crueldade sempre pronta a explodir, um crocodilo sob as águas, que, repentinamente, avança com violência e letalidade. Ele sorriu. Gostava de gente assim. 

O ambiente, alertara o apresentador, era inóspito e perigoso. Os faunos alados, embora os odiassem, não permitiam que fossem mortos, para que sua deusa não sofresse retaliações nas mãos dos caçadores. No entanto, acidentes acontecem. O Sr. Voin se concentrou. Não queria, de modo algum, causar má impressão logo em sua primeira vez. Ele sentiu o frenesi que antecede a vitória sobre o medo, o gosto de morte na boca. Realmente! Aquilo era o que estava precisando para se sentir vivo novamente. 

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O Sr. Voin olhou boquiaberto para o animal enorme, peludo como um bisão, uma carantonha temível, presas grandes, chifres e uma aura de malignidade palpável. Carregava algo entre os dentes, ainda vertendo sangue. Armin sussurrou, excitado, que a criatura alguma em qualquer dos mundos se lhe equiparava em ferocidade. A graça era matá-la em pleno ataque.  “Ele é todo seu”, disse o apresentador, “e não erre, ou seremos os dois mortos”. O Sr. Voin, assentiu, ansioso como uma criança pelo presente de aniversário. 

A fera os detectou. Largou o pedaço de carne que mastigava, retesou os músculos inacreditavelmente fortes  e soltou um longo silvo agudo, que eriçou de medo os pelos do Sr. Voin. E avançou a uma velocidade surpreendente, pulando para cima deles. Seu corpo gigantesco jogou uma sombra fria sobre o solo, a bocarra escancarada, seis fileiras de dentes afiados, uma porta para o inferno, da qual saía um odor nauseabundo de carne pútrida. 

O Sr. Voin abateu a besta e sua queda estremeceu as árvores ao redor. Armin ria desbragadamente, ótimo, ótimo, meu amigo, você é dos bons, matou um dos mais perigosos - e dava-lhe execráveis batidinhas nas costas -, ah, você vai gostar dos companheiros que estão aqui nos esperando. O Sr. Voin, engulhado pelo cheiro e pela excitação, teve vontade de matar o apresentador também.  

Armin olhava intrigado para a coisa que a criatura largara no chão. Porra, resmungou, enquanto chegava perto. O Sr. Voin tratou de segui-lo. De jeito nenhum ficaria para trás. 

Era um pedaço de perna humana. Um dos companheiros de caça! O Sr. Voin pensou que o apresentador fosse ter um momento de comoção. Mas não. 

- Bem, bem, meu caro, quem vem para cá sabe dos riscos. Quer desistir? Não? Ótimo, ótimo. Então vamos matar mais, capturar mulheres-pássaro e encontrar os outros dois companheiros. Vamos castigar aquela deusinha miserável, já que os malditos faunos não evitaram essa morte. Hoje eu fodo com aqueles desgraçados. 

Insuflado pelo vigor de Armin e com seu próprio feito recente, o Sr. Voin sentiu novamente o desejo de morte correr em suas veias. 

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As coisas, no entanto, não saíram exatamente como planejaram.

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O segundo companheiro não estava vivo para contar a história. E se estivesse vivo também não teria como contar. Seu rosto estava despedaçado, algo chupara seus olhos e parte da língua estava no chão. Dessa vez Armin explodiu.

Saiu atirando e matando inofensivas mulheres-pássaro. Elas caíram como folhas ao vento, lentamente, soltando suspiros de dor. A que caiu ainda com vida, Armin terminou o serviço a machadadas. 

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O Sr. Voin começou a ouvir um murmúrio que lhe pareceu raivoso, mas nada disse, podia ser sua imaginação exacerbada pelos acontecimentos. No entanto, crescia nele uma vontade cada vez mais irreprimível de vomitar e correr de volta para a segurança da mansão atrás da porta. 

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Encontraram, finalmente, o último companheiro. Que não estava em melhor estado que os anteriores. 

Eviscerado ainda em vida por uma espécie de carcaju de três cabeças – uma arrancava as vísceras, outra sugava o sangue, outra mastigava ruidosamente. 

O Sr. Voin vomitou até o coração que perdera há tantos anos. Armin descontrolou-se, atirando no animal e também no companheiro. Que importa, já estava para morrer mesmo. 

Foi quando o Sr. Voin descobriu que o estranho murmúrio que ouvia não era produto de sua imaginação. 

Meia dúzia de faunos alados se aproximavam, voando lenta, lentissimamente. Agora, escutando-os melhor, o Sr. Voin teve certeza de que emitiam uma canção de fúria e morte. 

- Seus malditos – vociferou Armin, a boca cheia de baba – vocês romperam o trato. Eu vou matar a vagabunda de vocês, estão ouvindo? Aquela anã ordinária vai morrer gritando. Vou acabar com vocês, bastardos desgraçados! 

Entre fascinado e aterrorizado, o Sr. Voin olhava aqueles seres metade homem, metade bode, as asas enormes, os músculos potentes. Carregavam algo nas mãos que ele não soube distinguir o que era, mas sabia que não devia esperar para ver. 

Temos de sair daqui, agora, gritou. Armin não lhe deu atenção, queria matar todos ali e na hora. O Sr. Voin deu-lhe dois tapas na cara, vamos embora, agora! Funcionou. Começaram a correr de volta à saída, o Sr. Voin aliviado - as criaturas voavam devagar demais para alcançá-los. 

O portão da liberdade, finalmente, ficou visível. 

E nesse momento Armin berrou em agonia. E o Sr. Voin percebeu que se enganara quanto à lerdeza dos faunos alados, que estavam bem perto. Um deles atirara um cipó em Armin, derrubando-o, um cipó vivo! que, enroscado em suas pernas, mastigava impiedosamente sua carne, enquanto cravava-lhe agudos espinhos serrilhados. 

O Sr. Voin perdeu o controle, abandonou o apresentador à própria miséria e voltou a correr, desabalado, pela noite violácea, gelada por um vento que ululava ódio e sangue, vingança e morte. 
 
Chegou ao portão, arfando, os olhos esbugalhados, os dentes batendo de pavor. O sopro do apito saiu fraco e trêmulo, mas a porta abriu. Ele estava livre!

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Não. Não estava. 

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Atrás da porta não havia saída, apenas chamas. No meio delas, a pequena deusa escravizada e a mulher-pássaro olhavam para ele com desdém e rancor, como se não sentissem o calor do fogo. 

O Sr. Voin sentiu uma vertigem, sua mente paralisou, incapaz de aceitar a realidade. Como elas puderam atear fogo na casa? E porque parecem insensíveis ao calor, às chamas, à fumaça densa e tóxica? 

Ele hesitou. Ou passava pela porta e se arriscava a morrer queimado ou ficava preso naquele mundo selvagem e hostil, sem companhia, comida, água ou munição suficiente. 

Fechou os olhos, tentando respirar e tomar uma decisão, rápido, rápido. 

Ao fundo, um ruflar pesado de asas e os gritos excruciantes de Armin. E, à sua frente, um click aterrorizante. A porta se fechara. 

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Uma caçada especial do outro lado da porta - 1a parte - um convite inesperado, mas muito bem-vindo

Uma caçada especial do outro lado da porta - 2a parte - um mundo fantástico se abre para o Sr. Voin às custas de torturas e mortes 






Comentários

branco disse…
"...sentiu o estilete gelado da inevitabilidade..." se essa frase foi uma promessa de emoções descritas com rara habilidade, ela cumpriu fielmente .
nada menos que formidável*
*elogio que uso raramente, pq poucos o merecem.
Marcio disse…
Se eu fosse um daqueles comentaristas de futebol que só conseguem descrever o que aconteceu em uma partida a partir do placar final do jogo já encerrado, eu diria que esse Voin é um tremendo pé-frio.
Tudo ia bem no clube de caça, quando esse Mick Jagger* dos caçadores apareceu e pôs tudo a perder (ainda bem, né? Esse clube não deveria nem existir).

*Apesar de recorrer ao senso comum que atribui ao Mick Jagger a fama de pé-frio, discordo veementemente disso. O sujeito é sinônimo de sucesso há seis décadas, e ainda tem gente que insiste nisso?
Antonio Fernando disse…
Fechou com chave de ouro!
Me senti como se fosse uma dessas criaturas de além-portal, conseguindo a tão merecida justiça após tantos abusos. Valeu a pena esperar a terceira parte! Parabéns, amiga!
Érica disse…
Muito bem! Final moralista como não poderia deixar de ser. Aplausos rsrsrs
PS: historinha sinistra, hein...kkk
Anônimo disse…
Confirmou minha previsão de que o mané iria virar caça! Não iria deixar impune um idiota ao que parece sem bons objetivos na vida e com dinheiro sobrando.
Anônimo disse…
Não devia ter lido antes de dormir…. Acho que terei pesadelos excruciantes hehe
Jander Minesso disse…
Alguém se f**** bonito, hein? O cara ficou entre a cruz e a espada. Ou quase isso.
Bela conclusão, Zoraya! A história era tão bagaceira que jurava que o vilão se daria bem no final. Então, esse final feliz foi até uma surpresa.
E por último, mas não menos importante, você tem razão: “os dentes ultrabrancos das celebridades televisivas” são um negócio assustador.
Albir disse…
Eu estava torcendo pelo assassino caçador. Qualquer um que se salvasse desse mundo me deixava feliz. Teria mais alguma coisa a dizer, mas minhas mãos estão tremendo para digitar, e meu coração sacoleja. Preciso de um sublingual.
Zoraya Cesar disse…
branco, lord white - o que dizer? qualquer palavra sua é ouro.

Márcio - hahaha, vc e Dom Albir competem em me fazer rir com seus comentários! Só para esclarecer, o Sr. Voin não era pé frio. Era um instrumento das Nêmesis para vingar o outro mundo.

Nando - que bom te ver por aqui de novo! seu comentário me aqueceu.

Érica - se vc achou sinistra, já fico satisfeita. E qt ao final, fazer o q, né? Acho q sou meio justiceira.

Anônimo 1 - isso isso isso. Imagina se eu ia deixar um imbecil desses impune. Nunca!

Anônimo 2 - HAHAHAHAAH, lamento - mas não lamento - sua perda de sono. "excruciante'... kkkkkk

Jander - hehehe, alguém se f@deu mesmo. Ele e todo o resto da trupe. Ahahaha, depois q vc me explicou achei mais engraçado ainda o 'bagaceria' kkkkk

Albir - Dom Albir HAHAHAHAHAHAHAA, eu acho q vou colecionar seus comentários, que me envaidecem e me fazem rir. Como disse acima, lamento - mas não lamento hehehe

Soraya - que bom! valeu mesmo. acho q não é bem seu estilo e vc foi até o fim!

A todos, muito obrigada, mesmo!
Zô, amei a riqueza das descrições dos personagens, das cenas, das ações. No final eu estava quase torcendo pelo malvado haha mas que bom que os faunos alados não se deixaram mais manipular. Fiquei curiosa para saber se a mulher pássaro e a deusa anã vão conseguir voltar para seu mundo, ou sé sacrificaram. De toda forma a história está muito bem escrita e com um ritmo excelente, parabéns!

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