UMA CAÇADA ESPECIAL DO OUTRO LADO DA PORTA - 1ª parte >> Zoraya Cesar
Depois de uma vida dedicada a traições, amoralidades, abrindo caminhos a ferro, fogo e sangue, O Sr. Voin finalmente conseguira ter uma empresa milionária e estável.
Tudo, no entanto, tem um preço, e com o Sr. Voin não seria diferente. Sua vida era um tédio. Depois dos 50 anos começou a procurar lugares exclusivos para pessoas no topo da cadeia alimentar, os happy few, como dizia, a boca cheia de orgulho borbulhante de Moët & Chandon – BiCentenary Cuvée Dry Imperial 1943. Orgias com vítimas do tráfico humano; cocaína preparada em laboratório dentro da casa do anfitrião de algum jantar, servida por animais de circo; pratos feitos de carne de espécies em extinção... nada era suficientemente grotesco ou bizarro para espantar o tédio do Sr. Voin e dar-lhe uma sensação de ser um especial entre os especiais.
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O ápice de sua glória veio em um convite que chegou à moda antiga: pelo correio.
O senhor está convidado a participar de uma atividade dentro do nosso clube de caça. Somos uma sociedade secreta da qual ninguém ouviu falar porque o preço da traição é a morte. Se o senhor não gostar da experiência, basta não voltar nem falar sobre nós, jamais, em sua vida.
Esteja no Antiquário Staryy exatamente às 23h50 de hoje. Se chegar antes ou depois sua entrada não será permitida e nunca mais será convidado.
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O Sr. Voin ficou mais excitado que um menino tendo sua primeira ereção, um adolescente antes do primeiro encontro, sem saber o que vestir, o que levar, o que fazer.
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A rua era pequena, estreita e sem saída. Para entrar, teve que mostrar o convite a uma sentinela de feições cadavéricas e olhos brilhantes, extremamente magro e estranhamente musculoso, cujas mãos lembraram ao Sr. Voin garras de caranguejo. Galpões enormes pintados de preto de um lado e de outro da rua, iluminados por uma fraca lâmpada em cada porta davam ao lugar a impressão de um estúdio de cinema abandonado a fantasmas e segredos obscuros. O Sr. Voin teve a impressão de ouvir um choro baixo, agoniado e soluçante vindo de uma das portas.
O antiquário ficava no final da rua. Uma escada de quatro degraus levava a uma porta de madeira e ferro, pesada e triste. Triste não, pensou o Sr. Voin que, mesmo não sendo chegado a superstições, sentiu que, atrás daquela porta encontraria crueldade e dor. Uma pequena parte de seu coração, ainda humano, se confrangeu. A outra parte se regozijou. E exatamente às 23h50 ele bateu à porta.
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Uma anã atendeu e imediatamente ajoelhou-se, trêmula, a cabeça baixa. Fez um gesto para ele entrar. O Sr. Voin era um detalhista, reparou em tudo num átimo de tempo. As mãos feridas da mulher, suas roupas transparentes, limpas e velhas, seu aspecto temeroso. O cabelo rosado sebento encaracolado.
A sala era decorada com esmero e luxo antigo, em tons marrons e verdes. Pendurados pelas paredes, quadros de seres fantásticos, como os pintores medievais retratavam as bestas e habitantes do Novo Mundo em sua imaginação exacerbada pela ignorância, bebida e relatos truncados.
Em algumas mesas, mais afastadas pelos cantos, havia gaiolas não muito grandes e, dentro delas, uma ou outra coisa se mexia. Que uma ou outra coisa seriam aquelas, o Sr. Voin não pôde discernir, a iluminação baça não lhe permitia. Mas havia, definitivamente, algo estranho em tudo aquilo. Os quadros, por exemplo, pareciam tão... vivos. E o que haveria dentro das gaiolas? E quem seria a mulher com sinais de espancamento que abrira a porta? Uma atriz?
Antes que pudesse conjeturar mais, um homem vagamente familiar adentrou a sala. Ah, reconheceu o Sr. Voin, era um famoso apresentador de TV, de um programa matinal voltado para a família. Andou em direção ao Sr. Voin com o sorriso largo, a mão estendida, o jeito dos autoconfiantes.
- Ah, você veio, ótimo, ótimo. Sei que está ansioso para saber o que está acontecendo, mas, antes, duas perguntas: você gosta de caçar?
Se ele gostava de caçar? Babava por uma caçada. Assim que enricou gastou alguns rios de dinheiro para matar animais selvagens, como leões e rinocerontes. Mas os afazeres acabaram por afastá-lo desse singelo hobby, que ele trocou por caçadas a pequenas empresas.
- E você se incomoda de caçar espécies, digamos, raras?
Não, em absoluto, o Sr. Voin não se importava, para dizer a verdade, quanto mais perigosa e rara a caça, melhor.
- Ótimo, ótimo – repetiu o sujeito, que parecia ter esse adjetivo como bordão ininterrupto – vamos às explicações. Espero que você não seja do tipo que se espanta com qualquer coisinha.
Ao se encaminharem para outra sala, passaram perto de uma das gaiolas. O Sr. Voin não se espantava com ‘qualquer coisinha’. Mas, definitivamente, não estava preparado para ‘aquilo’.
Um ser, metade mulher, metade pássaro, agarrava-se às grades da gaiola, soltando gritos mudos, que, ainda assim, pareceram ao Sr. Voin um pedido desesperado por socorro.
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Continua dia 13 de outubro.
Comentários
Fui ler além das 23h00 e já não sei se vou conseguir dormir muito facilmente.
Uma pena, estava mesmo precisando de um sono reparador.
Mas não tenho do que me queixar: é sempre um prazer ler os textos da Zoraya.
Aliás, lendo os comentários, dá pra ver que você já fez mais vítimas.
Sinto por elas, não tem volta!