AQUARELA AMARELA >> Cristiana Moura
A tinta escorria pelo papel sem intenção nem precisão. Enfim, ""viver não é preciso". O Amarelo aquoso sobre o papel atrai meu olhar em vibração tal que, por um instante, sinto que sou a cor amarela. Existe uma certa vitalidade da cor adentrando-me pelo olhar que, mesmo sentindo o corpo em inércia desejando hibernar no sofá, apesar do medo-angústia que chegue a morte daqueles que amo, sinto um calor que nem sopa feita pela avó em noite de inverno. Daquelas que a gente toma devagarinho e descem fazendo cafuné por dentro do corpo.
Apesar da sensação, nauseante, de que o tempo está passando e, concomitantemente está estagnado desde março, já é setembro. Este mês é amarelo. É um mês em que, mais do que nos outros lembramos que a vida tem dias bem difíceis sim, alguns parecem até não ter saída. E que, mesmo nestes dias a vida pode e merece ser reinventada, potencializada. É tempo de lembrar que afeto e cuidado são essenciais e que, em tempos difíceis, há de se pedir ajuda, acolhimento, aceitação verdadeira. Respirar e saber que mesmo nos tempos mais dolorosos é possível continuar vivendo.
Fiquei aqui pensando... Na mitologia grega o amarelo do Pomo de ouro é o símbolo da discórdia. Ao mesmo tempo é símbolo de Apolo, deus da beleza e da Luz. A vida é mesmo assim: impermanente, paradoxal, talvez desencontrada e, por certo cheia de diversidades que, quer sejam bonitas, quer sejam feias, carregam a beleza de serem múltiplas possibilidades do viver cotidiano.
Na aquarela amarela neste início de setembro, nasce a imagem de Oxum, dona do amarelo. Orixá das fontes e das águas doces. Oxum é bonita, dengosa, vaidosa em seu amarelo dourado e espelho na mão. Seu humor é caprichoso e mutável. Há dias em que suas águas são aprazíveis, calmas, límpidas. A passagem por essas águas é leve e plena de graça. Noutros dias, são tumultuadas, cheias de correntezas de tal forma que é impossível existir uma única ponte entre as margens. A inconstância e incerteza do viver. Oxum em fúria é capaz de destruir canoas que tentam atravessar o rio.
Há dias que eu nado. Há dias que me afogo. Depois volto a nadar. Noutro momento quase sufocar. A vida é assim mesmo? Deve ser. Há dias de águas serenas, Há dias de águas turbulentas. e o amarelo aquoso continua deslizando sobre o papel. Lembro-me de um trecho da música de Caetano:
"É o melhor
Que podia acontecer
A cor amarela
Destacar-se entre o mar
E o marrom
Da pele tesa dela"
O ritmo me invade junto à cor. Sempre será possível dançar!
Amém!
Ora yê yê ô !
IMAGEM: Cristiana Moura /2020
Comentários
ias sim, dias não.