SERES >> Soraya Jordão
O último monólogo afetivo que tenho lembrança aconteceu na venda do carro da família, a querida Brasília amarela. Abalada com a iminente separação, exigi um momento de despedida com Margarida, aquela lindeza cor de gema. Concedido o último desejo, caprichei: fiz carinho no painel, beijei o banco, porta-luvas e volante, agradeci por todas as vezes que fomos à praia, ao parque. Por fim, jurei jamais esquecê-la.
Em meio àquela dor profunda, ouvi da minha mãe: “Não precisa sofrer por isso, as coisas não têm sentimentos.” Chocada, atribuí tamanho absurdo a sua habitual esquisitice. Com o abrandar da inocência, aprendi a ter vergonha dessa tosca sensibilidade, desertando desse mundo fantasioso.
Acontece que o tempo é danado para fingir esquecido o que está apenas soterrado. E hoje, depois de passar algumas horas no corredor de um hospital público e observar o derramar das dores em macas frias, tubos de soro, seringas e sondas, voltei a pensar na real importância de cada ser.
De volta a minha casa, abracei meu travesseiro, beijei minha cama, agarrei minha manta e agradeci, emocionada, a existência deles.
Prefiro acreditar na alma das coisas a me anestesiar pela cegueira da rotina.
Imagem © Piyapong Saydaung, por Pixabay
Comentários
E tô com o André: você equlibrou muito bem objetividade e sensibilidade.
Não tem nada de sensibilidade tosca nisso.
Gd bjo, querida!
Encantador o seu texto.
Deu vontade cumprimentar algumas coisas esquecidas.