Estressado pelo excesso de trabalho, o Sr. Amadan andava mais distraído e atrapalhado que nunca.
Entregara uma poção afasta-mosca para D. Drosera, quase matando-a de fome. Fizera um creme desverruguento pra bruxa Sra. Clotds, que desmaiou ao ver suas amadas verrugas desmilinguirem.
Quando Mr. Stevenson, faminto, viu-se obrigado a devorar umas aranhazinhas costureiras malcriadas que jogavam teias nos caldeirões, tratou de colocar ordem nas coisas. Férias. O Sr. Amadan precisava de férias.
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Ao contrário de outros felinos, Mr. Stevenson apreciava viagens. Eram uma boa oportunidade para degustar novas iguarias, conhecer outros acompanhantes de magos, e, sejamos honestos, tocar o terror*.
Escolheram um hotel especializado em entes estressados. Havia massagens com óleo de urtiga, escalda-pés de lava vulcânica, passeios nas Corredeiras dos que não Voltam... E também palestras motivacionais: Como Prosperar no Outro Mundo; Aprenda a Mandar às Favas Contadas; Não Chore sobre o Veneno Derramado e outras.
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Sem as valises - as cegonhas-bagageiras entraram em greve -, o Sr. Amadan alugou algumas roupas. Entre elas um calção estampado de estrelinhas estalantes que, de vez em quando, espoucavam, dando-lhe pequenos choques, para grande divertimento de Mr. Stevenson.
Uma das atrações mais procuradas do hotel era a piscina de águas termais, vulcânicas, salinas, sulfurosas e geladas-árticas. Esperem. Tanta diversidade em apenas uma piscina? Sim. O hóspede poderia mergulhar feliz numa água quentinha e de repente ser escaldado por uma corrente vulcânica. Ou entrar numa água de lavanda e sair cheirando a enxofre. (Dizem que um membro da tradicional família Gastropods-Lesman quase morreu quando a água ficou, repentinamente, salina). Mas o que é uma vida sem emoção?
À noite, o Sr. Amadan foi ao debate promovido pela Liga das Fadas Siriris sem Asas: Fadas Madrinhas ou Fadas Mazinhas? O direito da escolha. Os debates fádicos eram sempre animados e a comida, minúscula.
Ele deu sorte. As Fadas estavam assanhadas (‘fadas assanhadas’ é um pleonasmo, bem sei, mas como resistir?). Algumas apregoavam o direito de mostrar ao mundo o quão más podiam, queriam e gostavam de ser; outras, que as Bruxas continuassem levando a má fama.
A Fada Madrinha afirmou que, por ela, Cinderella viraria cinzas, aquela chata do carai, que matara o próprio pai para ficar com a herança, acusando a madrasta. A Fada Azul disse que era mentira e fez crescer o nariz da Fada Madrinha. A Fada Sininho espalhou seu pó levitador por todo o salão, de tanto rir (O Sr. Amadan bateu a cabeça no teto).
De repente o lugar virou uma balbúrdia de vozes agudas raivosas, raios de energia dolorosos, varinhas de condão quebradas, sapos pululantes. Morgaine tentou apaziguar, mas Oberon e Titânia a xingaram de velha rabugenta metida a besta. Começou um duelo. O ambiente ficou tenso. Os não Fadas esgueiraram-se para o foyer, a se empanturrar com ovas de baicu-espinho e néctar de Mandaguari. Do lado de dentro, gritos e risadas histéricas, estrondos e estampidos. Fadas eram seres estranhos. Quando estressadas eram um perigo. O Sr. Amadan voltou para o quarto, a cabeça doendo, a boca dormente pelo pastel de jambu que ele, inadvertidamente, comera.
Que dia maravilhoso!
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E Mr. Stevenson? Divertia-se conversando longamente com o
Cheshire Cat sobre desaparecimentos, sorrisos sarcásticos e ditos espirituosos sem sentido algum. Riu de cair os pelos quando soube que o Gato da Alice quase comera a Lagarta, por detestar o cheiro do narguilé fedorento daquela pernóstica, que, se, no livro original nem nome tinha, depois do filme do Tim Burton só queria ser chamada de Absolem.
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Amanheceu chuvisquento, trovejante, cheio de raios, raios duplos. Depois de uma massagem relaxante com bucha de porcos-espinhos e aroeira, o Sr. Amadan sentou-se numa espreguiçadeira para ler o tórrido romance “A Banshee surda muda e o Saci Pererê”. Ah, como era bom tirar férias!
Apesar da história apaixonante, a névoa e os gritos vindos da piscina fizeram-no cair num soninho tão bom.
- AAAAAHHHHH SR. AMADAAAANNNNN – o grito da D. Cacta-Star balançou as mesas, afastou as nuvens e quase matou o mago do coração.
- Não vou demorar, juro. O senhor pode aumentar o número de insetos do meu corpo? Agora? O Baile dos Espinhos é hoje e minhas pulguinhas estão tão magrinhas – choramingou.
O mago tartamudeou, ainda assustado, mas Mr. Stevenson pulou em seu colo e pôs-se a bufar ameaçadoramente para a desabusada.
A Sra. Cacta-Star conhecia a fama de Mr. Stevenson. Saiu, arrastando seus insetos, contrariada com a má vontade do mago em atender pedido tão simples, só porque estava de férias. (Dizem que, mais tarde, a dita dama fez um escarcéu, porque todas as suas lindas pulgas tinham sumido sem deixar vestígios. Dizem também que, naquela tarde, Mr. Stevenson não desceu para o lanche. Mas é o que dizem - eu, eu mesma, de nada sei).
O Sr. Amadan resolveu relaxar no salão de jogos. Cartomantes, tarólogos, mágicos e videntes jogavam bridge, pôquer, buraco... Numa mesma mesa, usavam-se baralhos diferentes - Marselha, Crowley, Cartas Comuns e outros. As fichas eram ossos, cascas de moluscos, feijões azedos. O prêmio seria uma caixa de música com lesmas dançarinas, muito catitas e desafinadas.
Depois de algumas rodadas de energético
Toro Rosso-Mocho, o clima esquentou. Surgiram denúncias de clarividência, hipnose, projeções astrais, prestidigitação ilegal. Mesas foram viradas, coelhos fugiram das cartolas, bolas de cristal rolaram pelo chão, cartas voaram como shurikens para todos os lados (O Sr. Amadan perdeu uma parte da barba). De repente, o croupier anunciou, indignadíssimo, que as integrantes da caixa de música haviam desaparecido. O mago retirou-se, discretamente.
(Dizem que, nessa noite, Mr. Stevenson não apareceu para o jantar. Dizem. Eu, eu mesma, nada posso provar).
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Antes de as maravilhosas férias terminarem, o mago recebeu uma cortesia inusitada: todo o dinheiro de volta se fosse embora o quanto antes. Aceitou – afinal, já se divertira bastante. (Dizem que o hotel cogita impedir a presença de gatos mágicos dali por diante, mas deve ser fofoca).
Mr. Stevenson bocejou languidamente. Muito bom viajar. Vingara-se de uma cliente chata e inconveniente, aprendera uns truques com o Cheshire Cat, degustara novas iguarias
(quanto a isso, nada ficou provado) e seu mago estava feliz.
Mas, na verdade, ‘there is no place like home’, como dizia seu amigo, o cachorro Toto, enquanto roía os sapatos vermelhos da Dorothy.
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Algumas referências: Cinderella; Pinocchio; Peter Pan; Rei Arthur; Sonhos de uma Noite de Verão; Alice no País das Maravilhas; Corrida Maluca (Dick Vigarista); Folclore irlandês e brasileiro; O Mágico de Oz
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Comentários
Deve ter ficado ainda mais biruta.
Mas eu gostei do truque para dar o beiço no hotel. Vou tentar na minha próxima viagem.
Soraya - valeu, obrigada!
Márcio - hahah, impossível ele ficar mais biruta, Mr. Stevenson cuida muito bem do Sr. Amadan. Tenta o lance do hotel, depois me diz se deu certo!
André - kkkk pois é, não! A ilustríssima e tradicional família das Lesmas é classe média mesmo
Jander - ahhhhh, puxa...
Anônimo - realmente, o gosto de Mr. Stevenson é, digamos, peculiar. Mas o que esperar do gato de um mago?
Erica - Amiguinha, que bom!!
Você é ótima! Bjs
Já vou colocar na minha lista a palestra "Aprenda a mandar às favas contadas" (Sabe se tem "A arte de usar a pá"?). Da piscina de águas mistas estou com dúvidas, mas acho que posso contribuir sobre o debate das fadas, trazendo algo sobre Fadas Magrinhas. Se o Sr Amandan concordar, eu agradeceria o empréstimo de Mr. Stevenson - sou a mulher dos gatos! - pois gostaria de receber meu dinheiro de volta. Aliás, minha querida e sarcástica narradora, adorei o tórrido romance "A Banshee surda muda e o Saci Pererê”. Irônia das mais finas.
Gde bjo, querida!