AINDA SEM TÍTULO >> Ana Raja

Marie Laurencin

O que vejo por essa janela escancarada, sem tela de proteção, além de a vida acontecer alheia a mim? A música da playlist é uma mistura de passado que pouco reconheço e um futuro de causar febre; não se encaixa no presente. O pior, é que ela combina tanto comigo. Enquanto a escuto, me acabo em lágrimas e em sonhos.

Há masoquismo nisso. Quantas de nós já sentiu algo parecido? Com certeza na adolescência, pois esse faniquito não faz parte da maturidade, a não ser que eu esteja no climatério..., mas já?! O inferno na terra e a quentura no corpo.

A playlist insiste. Preciso reagir. 

Talvez uma viagem, um café, um livro de poesia, um bar com música ao vivo, ou um telefonema para alguém. A última opção é uma solução razoável e lúcida. A minha melhor amiga saberá o que dizer, costuma ter pressentimentos incríveis. Às vezes, me liga para perguntar o que está acontecendo, ou então, para dizer um sonhei com você. É claro que alguém assim vai esclarecer a confusão que estou atravessando. Imagino as palavras doces que ela irá usar: isso é bobagem; liga não; tem nada não, boba; é coisa que dá e passa, é normal. E para encerrar a conversa: marca uma consulta com o ginecologista, deve ser coisa de hormônio ou a falta dele.

Eu não sei se acho graça dessa conversa inspiradora ou se choro mais. Mas saio dela convencida, pois a melhor amiga sempre tem razão.

Abro o armário, escolho o calçado; volto para a janela, analiso o tempo racionalmente — detesto palavras terminadas em “mente”; decido ir de sandália de salto baixo, tipo rasteirinha — não suporto diminutivos, mas hoje estou estranha mesmo. Me arrumo e saio em busca do lá fora do dia.

No carro, conecto o celular com o bluetooth e coloco a abençoada da minha playlist para trabalhar, a causadora do meu sofrimento. A cada sinal fechado, lágrimas e um nariz efeito chafariz. 

Que saco, esqueci de tomar a dose diária de hormônio!

***

Esse texto foi baseado em uma bela e louca conversa entre mulheres reais sobre os seus devaneios diários sobre a idade do corpo. A mente vai bem, obrigada.

Imagem © Marie Lourencin, por Public Domain Museum

anaraja.com.br

Comentários

Jander Minesso disse…
Não consigo imaginar pelo que vocês passam, mas seu texto conseguiu transmitir bem a sensação para o leigo aqui, Ana.
Soraya Jordão disse…
É sempre um bom começar de domingo. Adorei!
Zoraya Cesar disse…
Ana, identificação total! Por favor, desdobre mais essas conversas, vai ser meio uma catarse pra todas nós!
Albir disse…
Mistérios femininos que não nos atrevemos a desvendar. Mas estamos solidários!
Clara Braga disse…
Belíssimo texto!!
Nadia Coldebella disse…
Ah, como me achei!
Estou começando nisso, mas já ando bem incomodada, o suficiente para maldizer quem inventou o desgraçado dos hormônios.
Quero mais textos como esse!
Gde bjo!
Ah os hormônios… às vezes a TPM me coloca num estado parecido. Você transmitiu com sensibilidade e poesia estes nossos humores femininos… também me reconheci no telefonema, é muito bom ter bons amigos nestes momentos.

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