Deco >>> Nádia Coldebella
Deco é um homem relativamente baixo - cerca de um metro e meio. Ele tenta ser elegante, sempre com as mesmas calças jeans azul claro e camisa xadrez do mesmo tom. Usa sandálias ou chinelos e, dependendo do clima, usa meias também. A cabeça de Deco é grande para o corpo e nela pensamentos e ideias vagueiam. Ele mantém longas conversas com um ente que só ele vê; outras vezes, desenvolve planos mirabolantes em voz alta. Quando ele trama ou planeja sem esconder nada do mundo, seu semblante adquire um tom grave. Parece estar sempre preocupado. Seus olhos, penetrantes, entram na alma de qualquer um, mas, se você olhar direito, vai ver apenas um vazio, um espaço oco. Ele apenas vive e, na maior parte do tempo, parece inconsciente de si próprio.
Alice, quando o vê pelas ruas, se pergunta o que está por trás de uma vida como aquela. Ela também imagina que Deco estreou nesta Terra num dia cinzento e sem plateia, porque cinza era a cor que encontrava toda vez que olhava para ele. E, se Deco teve mãe, essa não se importou muito com ele.
Na verdade, Alice acredita que ninguém se importa se ele existe ou não, porque a sua existência é como a da erva do campo, que nasce no início da manhã e morre no fim da tarde, sem acrescentar qualquer coisa para esse mundo. Um pensamento cruel e, certa manhã, ela se deu conta da própria crueldade.
Depois da noite chuvosa, a manhã chegou fresca e exuberante e, durante a caminhada, Alice encontrou Deco, mais taciturno que o habitual. Ele estava parado em frente a uma escola infantil, olhar oco pousado no portão. Ela podia ouvir os bebezinhos chorando e o cantarolar das crianças maiores, mas Deco parecia alheio a tudo isso, parecia em transe, de olho fixo na campainha.
Ele então estendeu o braço curto e musculoso e, com o punho fechado - em que estranhamente segurava um cigarro gasto, fedorento e apagado - tocou a campainha, uma, duas, três vezes…
- Deco, pára, você vai acordar os bebês! - Alice falou asperamente e surpreendeu-se, zangada com ele.
O homenzinho endireitou o corpo. Seus olhos fixaram os de Alice e, por um momento, ela não encontrou gravidade alguma. Apenas viu a criança preocupada e confusa que habitava aquele corpo.
- Os bebês vão acordar? Os bebês vão acordar? - ele começou a andar rapidamente de um lado para o outro, muito agitado, cabeça baixa, olhos no chão. Alice reparou que, quando ele andava, seus joelhos ficavam meio juntos e ele arrastava os pés, levando consigo qualquer coisa que estivesse no caminho. Tocou a campainha novamente e uma professora já se aproximava para atendê-lo.
- Desculpa, desculpa, os bebês, os bebês. Desculpa. - E saiu andando apressado, sandália pisando na calça comprida demais. Ele parecia um dançarino, levando seu corpo para lá e pra cá, numa cadência que só ele conhecia.
A professora notou a cara perplexa de Alice e, sem ser perguntada, explicou que Deco fazia aquilo toda manhã, no mesmo horário. Também contou que as crianças já o conheciam pelo nome e estranhavam quando a campainha não tocava.
Algumas quadras depois, Alice encontrou-o, andando em círculos, embaixo de um velho flamboyant. Deco chutava as vagens secas da planta e pisava nas poças de água, sem parecer sentir o desconforto que a lama causava nos seus pés, hoje calçando meias e sandálias velhas. Estava agitado, irritado, impaciente. Parou um momento e seu olhar encontrou o de Alice. Esse não era um olhar oco ou vazio. Deco estava ferido, magoado e muito bravo.
Ela ficou com medo, pois quem imagina o que um homem como Deco pode fazer se se descontrolar? Acelerando o passo, ela não entendia o que era aquela angústia quente em seu peito. Olhou para seus próprios pé e ficou pensando, envergonhada, que se a existência de Deco fosse leviana, a dor e a culpa que ela estava sentindo agora simplesmente não existiriam.
Comentários
Quantas vezes essa inconsequência nos assola ao lidar com as fragilidades.
E que escritora versátil! Traz, com a mesma sensibilidade, personagens assustadores e doces criaturas.
Parabéns!