VIVER DE MÚSICA >> Carla Dias


Gosta de escutar música ao acordar, qualquer uma capaz de lhe provocar a sensação de felicidade. Entre escovar os dentes e se enfiar em roupas, a trilha sonora parece ter vida própria, e lança ao recinto a pluralidade sonora: era felicidade, agora, inquietação. O ritmo muda, a urgência mora nos compassos. Intervém na ordem e escolhe algo mais devaneador. Antes de chegar ao refrão da canção, sente-se abraçado por melancolia; ela o congela no meio da sala. Odeia quando isso acontece antes do café da manhã, porque seu estômago revira, não aceita visita, e o vazio, destinado a ser apenas um eco de alerta para a necessidade de alimento, expande-se. Não gosta quando as palavras interferem na música, mas não consegue evitá-las. Nem tudo o que agrada vem sozinho, já aceitou o fato. Reconhece o valor das reflexões que acompanham tal sentimento, selando sua importância. Até a música precisa de quem a torne “alguém” melhor. No entanto, evita pensar em como o desagrado também pode ser apenas aversão à desestabilização de suas confianças. Por alguns instantes, perde a certeza de estar onde está. Culpa dos violinos gritando em seus ouvidos, enquanto aprecia a eloquência de suas vozes. Seu corpo vibra esquisito, como se a pele se soltasse dele, movimentando-se por conta, feito tecido morno. Enquanto calça os sapatos, os músculos reagem ao labirinto dos graves vibrando os móveis da casa. Antes de decretar o silêncio da intimidade de suas playlists, revigora o espírito, escutando sete vezes a mesma canção, odiando, em apreciação, o som das palavras a complementarem o da música. Às vezes, até lhes dá atenção. 

Imagem © Anthony Scanlon, por Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
A conversa do título com o corpo do texto foi um negócio à parte. Deu show de novo, Carlandreia. Mas talvez seja uma opinião suspeita, já que você apelou para um tema caríssimo! :D
Carla Dias disse…
Pois é, Minesso. A gente vive de música como instrumentista e pessoa.
Anônimo disse…
"Nem tudo o que agrada vem sozinho." Lei da natureza que percisa ser cantada diuturnamente nesses tempos hedonistas. Belo texto. André Ferrer aqui.
Soraya Jordão disse…
Quanta beleza você trouxe para o meu dia. Adorei as imagens que sua linhas desenharam.
Albir disse…
Playlists têm vida própria, para o bem e para o mal. Assim como a trilha sonora registra e potencializa bons e maus momentos. Muito bom, Carla!
Nadia Coldebella disse…
A música faz mesmo milagres. Outro dia vi uma pessoa extremamente agitada, agressiva (estava delirante) se acalmar ao ouvir Sandra de Sá. Impressionante.
Existem os que vivem de música, os que vivem para a música e aqueles a quem a música faz reviver.
Tudo cientificamente comprovado.
Bjka, Carlinha

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