AOS MESTRES, COM CARINHO >> JANDER MINESSO

 

Escrever uma crônica para os meus professores é uma péssima ideia. Tive a sorte de ter tantos mentores incríveis que, sem dúvida, vou me esquecer de alguns. Então, já quero começar agradecendo e pedindo desculpas a todos os grandes docentes que eu não mencionarei.

Também quero dispor deste segundo parágrafo para dizer aos maus professores que tive que também lembro muito bem de vocês. Mas por piedade, vou poupá-los da vergonha pública.

E aproveito este terceiro parágrafo para dizer que, se você está na dúvida se é um grande mestre anônimo ou um professor de merda no meu ranking, faça uma autoanálise e a resposta virá.

Preâmbulo feito, vamos aos fatos: o mundo precisa de pessoas que ensinem pessoas. O Brasil, mais ainda. E é muito difícil não cair na tentação de reforçar a importância óbvia dos docentes, defendendo a causa e pedindo melhores condições para estas criaturas abnegadas e devotadas à difusão do saber. Mas verdade seja dita: não é este texto que vai aumentar o salário de alguém, certo? Então, chega de enrolar e bora para as homenagens.

Acho mais prático seguir uma ordem cronológica, começando pela Tia Lúcia do pré. Claro que meus pais vêm antes na linha do tempo, mas os dois são hors-concours. Então, a Tia Lúcia vai puxar a fila. Ela foi minha primeira paixão, mas nós nunca teríamos dado certo. Digam o que quiserem sobre o amor, mas um menino de cinco anos e uma mulher de vinte e tantos vão ser crucificados pela sociedade se formarem um casal. E ela nunca me deu muita bola, mesmo. Mas ao menos, a moça tinha uma paciência de Jó, porque todo dia eu chorava na escola e ela me consolava. Todo. Santo. Dia. Além disso, quando um menino me empurrou e eu consegui a façanha de quebrar a cartilagem da orelha, foi a Tia Lúcia quem me colocou no colo, botou gelo na pancada e me acalmou até que minha mãe chegasse. Uma pena que não demos certo.

Mas acho que o rol de grandes mestres começa de verdade quando entrei no primário (hoje Ensino Fundamental – anos iniciais). Quem guiou meus primeiros passos no mundo mágico da alfabetização foi ninguém menos do que a lendária professora Miyoko. Amada por muitos e temida por tantos outros, ela tinha tudo que você espera de uma professora da primeira série: era competente, dedicada e severa sem perder um certo toque maternal. Pior para o filho dela, que estudava com a gente e tomava bronca da mãe e da professora ao mesmo tempo. Bom aluno que sempre fui, lembro do dia em que esbarrei num desafio terrível em aula: a divisão com dois números dentro da chave. Aquilo não entrava na minha cabeça nem a pau. E orgulhoso que só, eu tinha vergonha de admitir a dificuldade para a professora. Até que um dia, sentindo que algo não estava bem, ela chegou perto de mim e disse: “ninguém tem que saber tudo, viu?” Que grande lição. Na mais tenra idade, dona Miyoko tirou um peso gigante dos meus ombros. E ela só precisou de uma frase.

Outra professora maravilhosa foi a Selma. Ela me deu aulas de Português e Educação Artística. Aliás, minha vida acadêmica se entrelaça com a vida dessa mulher em muitos pontos. Anos depois, eu teria aulas com o marido dela, Reinaldo, professor de Administração de Materiais no ensino técnico; e com o pai dela, o professor Celso, autor da célebre frase “quando um burro fala, o outro abaixa a orelha e cala essas boca maldita que vocês têm (sic).” Mas a Selma era o oposto do pai. Ela iluminava a sala de aula quando entrava. Sua risada era um raio de sol, mesmo na mais triste manhã de verão (desculpem, mas eu odeio verão). Ela foi nossa coordenadora de classe e levou a 3ªB de 1991 a uma vitória acachapante na coleta de prendas para a festa junina daquele ano, feito que garantiu para toda a sala uma ida ao Playcenter inesquecível. Ou esquecível, porque eu não sei se o prêmio foi esse, mesmo. De qualquer forma, Selminha era sensacional.

Parando agora para analisar, talvez meu gosto pela escrita tenha nascido da sorte de ter professoras de Português não menos do que sublimes. Porque depois de Miyoko e Selminha, já na quinta série, fui agraciado com o conhecimento de ninguém menos do que ela: professora Dulce. Professora Dulce que, no alto de seus um metro e cinquenta e oito, amarrava uns toquinhos de madeira nos pedais da fusqueta branca que ela dirigia. Mas se suas pernas eram curtas, seu saber era imenso, alcançando os mais ermos recônditos da alma humana. Foi essa criatura abençoada que, num dia qualquer, chegou na sala com um catálogo de livros e deixou que escolhêssemos dois. Quaisquer dois que a gente quisesse, desde que fossem consenso entre a sala toda. Os escolhidos seriam as leituras do semestre. Articulando um eficiente lobby que contou com a competência do meu amigo e comparsa Osório, convencemos a classe de que as melhores opções eram O médico e o monstro e uma coletânea de contos do Edgar Allan Poe. Dois livros maravilhosos e pouco indicados para crianças da quinta série. Mas a professora Dulce não só permitiu que os lêssemos, como nos guiou na fina arte de interpretar os textos e analisar porque um cara embebedou outro com vinho caro e depois emparedou o desgraçado para que ele morresse. Como não amar uma mulher dessas?

Mas se minha paixão pela Última Flor do Lácio nasceu cedo, foi só na oitava série que mais uma mulher fodona abriu meus olhos para o mundo da Geografia. Seu nome? Elizabeth Mie. Ela combinava as funções de professora e dona da vídeo locadora do bairro, o que era bastante providencial: sempre dava para alugar uma fita de graça quando a gente escolhia um filme que tinha algo a ver com a matéria. Por outro lado, nenhum argumento a convencia de que assistir a Colegiais safadas 3 era a melhor maneira de assimilar a aula de Educação Sexual. Outra coisa que a Mie sempre fazia era obrigar a gente a ler jornal. Na última aula da semana, todo mundo tinha que levar pelo menos duas notícias, ambas comentadas. Se levasse mais, ganhava mais pontos. E ainda que, hoje, qualquer um saiba que os jornais são fontes de informação tendenciosas, nada confiáveis se comparadas ao grupo de Zap da família, ainda assim dona Elizabeth criou um hábito mui saudável naquelas crianças. Ponto para ela.

O colegial (hoje Ensino Médio) foi um momento de entressafra. Era o final da década de 1990, quando muitos filhos das classes baixa e média faziam um curso técnico “para ter alguma profissão.” Foi assim que eu cursei o colegial técnico em Administração de Empresas, aprendendo coisas que nunca usei na vida. Mas ainda assim, tive um punhado de grandes tutores, como os já citados Celso e Reinaldo, sem falar no célebre Luís Carlos, que sempre profetizava: “se pensar, fica mais fácil.” Mas vejam que ironia: foi aqui, no curso mais inútil que já fiz, que encontrei um dos melhores professores. Zezinho Massayuki era um gênio da História e me ensinou a fazer aquilo que o Luís Carlos cobrava: ele me ensinou a pensar. Na primeira chamada oral, o Zezinho me mandou uma pergunta cabeluda. Nem lembro qual era. Mas lembro muito bem dele olhar no meu olho e dizer: “a resposta para essa pergunta não está explícita no texto que você leu. Ela está nas entrelinhas. Então, você vai ter que pensar.” Como disse antes, eu era um bom aluno, mas um bom aluno de araque. Estudava um dia antes da prova, quando muito, só para decorar a matéria. E agora, aquele baixinho com óculos fundo de garrafa queria que eu pensasse. Quase me caguei de medo. Mas de repente, as coisas começaram a se conectar dentro da minha cabeça. E depois de alguns segundos de silêncio, percebi uma coisa mágica: eu sabia a resposta. Ela estava lá, bem escondidinha entre as palavras do texto. Graças ao Zezinho, nunca mais esqueci essa lição: às vezes, as coisas mais importantes não são ditas, mas elas estão lá.

O cursinho também trouxe ótimos professores, todos anônimos. Teve a professora de Redação, que me ensinou a importância da humildade com a frase “você escreve bem, mas acha que é o Machado de Assis.” Teve também o professor de História Geral, que sempre parava a aula ao meio-dia para ouvir os sinos da igreja e depois gritar: “Eis o sino, que põe fora de si os habitantes da ilha.” Eu nunca soube de onde veio essa citação. E teve também o professor de inglês, que uma vez implorou para eu ficar em pelo menos uma aula. Mal sabia ele que eu tinha aprendido inglês com a melhor. The best. The one and only Maria Clarice Hubert. E quem aprendeu com Maria Clarice Hubert não precisa de mais ninguém, thanks.

Aí eu cheguei na faculdade. E errei de novo, porque fui fazer Administração de Empresas outra vez. Por sorte, o professor Antônio, de Filosofia, me encontrou num boteco em Ilhabela durante algum feriado e, enquanto tomávamos uma cerveja, mandou a real: “não sei se você notou, mas você odeia Administração de Empresas. Vai fazer outra coisa.” E foi assim que eu larguei a primeira faculdade e fui estudar Rádio e TV, curso que me agraciou com três professores memoráveis. O primeiro foi o Dalmo. Cineasta, artista performático e sósia do Toquinho, Dalmo me ensinou que eu não era tão bom a ponto de precisar ser humilde. Um rei da elofensa, aquele homem. Mais tarde, tive a sorte de cruzar com dois professores cuja amizade foi muito além da sala de aula. Um deles é o Alfredão, que tem as horríveis falhas de caráter de morar no Rio de Janeiro e gostar do lugar. Foi ele quem me ensinou que talento é bom, mas empenho é melhor. O cara sentava do meu lado enquanto eu editava meu documentário de conclusão de curso e não arredava o pé enquanto não sentisse que o trabalho estava bem feito.

Outro mestre da faculdade que virou um amigo para a vida foi o Maurício. Ele me deu aula de Fundamentos de Áudio. Mas o que ele me ensinou de verdade é que você precisa colocar seu rabo na reta para descobrir se você sabe o que acha que sabe. Afinal, segundo o próprio, “quem tem boca fala o que quer.” Uma baita aula. Tal qual o Alfredo, o Mauriba também me ensinou que esforço costuma dar mais resultado que talento. Pior para mim, porque eu continuo movido pela preguiça. Pouca coisa na vida me motiva. Mas eles tentaram.

Acredito que, a essa altura do campeonato, só continuaram a leitura os professores que ainda não foram citados. Então, para arrematar, quero agradecer a mais alguns nomes de peso. Marco Guerra, Paula Belfort e Bob Coelho me ensinaram que Arte é um negócio maravilhoso, apesar dos artistas. Já Vicente França, o mestre do basquete, sempre disse: “lance livre ganha jogo.” O Antônio me deu aula de História na quinta série e Filosofia no colégio, além de me lembrar que existe mais vida na vida do que nos livros. E por último, gostaria de deixar um mimo para minha calorosa professora de Estudos Sociais da quarta série, que ameaçava me machucar e arrancar meu sangue se eu fizesse qualquer gracinha na aula dela. Ela me ensinou o poder da coerção.

Assim, chego ao fim desta homenagem grande demais e, ao mesmo tempo, insuficiente. Obrigado a todos que citei aqui. Obrigado a todos os guerreiros anônimos que esqueci de mencionar. E, ainda que eu tenha tentado um truque lá no começo, não vai ter jeito: terei que encerrar agradecendo o maior de todos os professores: meu ilustre pai. Afinal, nas palavras do próprio, “a vida é uma escola. E quem aprende mais rápido apanha menos.” Valeu, mestre.

Comentários

Cleber disse…
Não estudei contigo, mas me lembrei de muita gente (citada ou não)… Alguns famosos. Outros, talvez desconhecidos…
Citar Luiza Paula com seu “te tiro o sangue, menino” foi quase épico.
Também me fez lembrar do “temos isso também”, do Celso, paraninfo da minha turma de administração no colegial.
Lembrei do Luis Carlos ajudando uma amiga a recalcular o valor unitário da laranja ao “mudar” o preço da dúzia de $ 24,00 pra $12,00.
O Severino de Ciências, que se referia a mim pelo número de chamada, mesmo depois dos meus 30 e poucos anos na fila do banco.
A Neuza de História, que aplicava prova de óculos escuros ficando em pé em cima da mesa.
A magnífica Josefina, a temida, de Língua Portuguesa, que me autorizou a ler Lucíola, de José de Alencar, e explicar pra todos os alunos da 7a série o que era a vida de uma prostituta no RJ do século XIX. Desafiador pra minha timidez.
O Flávio de Microeconomia e Matemática Econômica que deu uma aula inteira errada de propósito.
O Aglas de Macroeconomia, o peruano com cara do Apolo Creed. Um dos maiores símbolos da profissão. Esse cara, foi sensacional ao perceber que uma classe inteira do 4o ano de Economia não sabia a base da matéria e voltou dois anos de estudos pra fazer, aqueles que quisessem, aprender 2 anos inteiros de economia monetária em um semestre.
O Ferrante, da pós, que disse a célebre frase: “…na vida, muitas vezes a gente tem que gostar do que faz (…) e aí, no meio disso, vai ter algo que você ame de paixão, e esse é o seu negócio.”
O Taka de Matemática financeira e da sua “regra de três simples”.
Os professores da vida profissional personificados na dupla Edélcio e Manoel.
E talvez mais um ou outro que o sono dessa manhã não me ajudou a lembrar.
Ao passar por essas lembranças te até uma nostalgia afetiva em função dos tempos em que só tínhamos que estudar…
Obrigado mestres!!!



Anônimo disse…
"Parando agora para analisar, talvez meu gosto pela escrita tenha nascido da sorte de ter professoras de Português não menos do que sublimes." Comigo também. Acrescento, ainda, o fato de que minha mãe, professora também, sempre gostou de ler e comprava muitos livros. Bela homenagem amigo!
Anônimo disse…
Feliz quem soube aproveitar da melhor fase da vida!
Pai do Jander
Ana Raja disse…
Que lindo parágrafo dedicado a "tia Lúcia". E que memória vc tem. Eu não lembro de todos os nomes dos meus professores.
Jander, mais um texto inspirador e muito bem escrito.
Leticia disse…
Amei as homenagens ! Saudades do Dalmo e suas aulas performáticas kkk saudades do Alfredo pegando muito no seu pé no nosso TCC kkkk. Que privilégio o meu ter estudado com vc, seu ridículo!
Você nem imagina, mas aprendi tb muito com vc. Obrigada ☺️
Nadia Coldebella disse…
Adorei a homenagem! Ri alto com esse seu bom humor vivaz. Vc escreve de um jeito muito bacana, não dá pra gente ficar entediado - embora nas entrelinhas haja uma nostalgia contundente.

Tbm não gosto do verão e amei a professora que subia na mesa. Eu tinha um que de física que, com a maior cara de pau, puxava os óculos quadradinhos para ponta do nariz, encarava as meninas com cara de safadeza e dizia: galera, vamos por no gráfico...

Show de homenagem
Zoraya Cesar disse…
Que história deliciosa, Jander! Acompanhei sua trajetória e seus professores com tanta leveza e alegria. Que homenagem linda e comovente e feliz.

(agora, tá devendo uma aos maus professores, pode ser sem nome. é cada aperto q a gente passa com eles, vai ser engraçado ler seu relato)
Albir disse…
Ótima homenagem, Jander! Me remeteu aqui para alguns mestres queridos.
Soraya Jordão disse…
Jander, quisera ter sua memória... Seu texto tocou num canto muito precioso em mim. Helena, professora de Biologia e Tuninho, Redação. Fui péssima aluna, potencialmente delinquente, mas eles apostaram em mim, me convenceram de que eu era uma pessoa legal. Prof Tuninho, eu o reencontrei na Imperatriz, escola que desfilo, e pude falar-lhe da minha gratidão. Helena, baixinha, professora do Luso Carioca, nos idos de 76, nunca encontrei, embora a procure em todo rosto. Queria que ela soubesse que me tornei a pessoa que ela inventou/apostou que eu era. Amei seu texto.
Anônimo disse…
Que coisa linda !!! " em tempos de cólera " parafraseando o grande Gabo. Ser notado é referenciado é mérito sem tamanho, não tem kikito, urso de prata , ou até mesmo o dourado do Oscar. Ganhei a maior das homenagens . Parabéns pelo texto e sua manifestação de apreço aos mestre .

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