PARTIDOS E REMENDOS >> Albir José Inácio da Silva

 

Para evitar mal-entendidos, considerando alguns nervos ainda expostos pelas recentes escaramuças políticas, necessário explicar que estes fatos não se passaram na última eleição. Aconteceu no pleito municipal de uma cidadezinha tranquila em algum lugar deste país. Melhor não identificar cidade, candidatos e protagonistas.

 

Se me contassem eu não acreditaria, mas ninguém contou, eu vi o fim daquela amizade. Eles tinham bótons de candidatos diferentes e vitupérios semelhantes:

 

- Homofóbico! Dignidade é igualdade de direitos. Por que a família hetero é melhor que a família gay? E o seu partido afundado em corrupção? Você tá levando alguma coisa?

 

- Gaysista! Se você defende essa escória, é porque tem alguma inclinação, algum desejo escondido! Onde ficou perdida a sua fé e a sua honra?

 

 Os dois candidatos à Prefeitura com chances de vitória, segundo os institutos de pesquisa, digladiavam-se sobre questões que incendiavam as ruas, não importando que os temas não se incluíssem entre as competências municipais.

 

Como sabemos todos, é comum ver candidatos à Câmara Municipal prometendo pena de morte, parlamentarismo e assembleia constituinte. E candidatos ao Congresso Nacional garantindo asfalto e poste de luz na rua do eleitor.

 

Mas deixemos por ora as eleições e vamos conhecer nossos dois amigos. Eles atravessaram juntos a rebeldia e as inseguranças da adolescência. Apoiaram-se durante as dificuldades do ensino médio, estudando e passando cola nos momentos mais difíceis. Sofreram e comemoraram juntos a dureza e a vitória no vestibular.

 

Como irmãos foram se moldando na convivência de modo a querer as mesmas coisas, praticar os mesmos esportes e até a gostar das mesmas mulheres. Mas pensam que isso foi problema? Não. Generosamente evitavam qualquer rivalidade, preferindo abdicar do amor em benefício do amigo.

 

Para não dizer que em tudo combinavam, reconheciam uma divergência: torciam para clubes diferentes. Mas isso também resolveram. Quando os times se enfrentavam, iam juntos ao estádio, separavam-se nas torcidas e reencontravam-se na saída para o chope.

 

Todos pensavam que eram inseparáveis, mas surgiu a campanha eleitoral. Da primeira vez divergiram como divergem as demais pessoas. Mas alguma coisa martelava-lhes a alma, um sentimento mútuo de traição, “como é que o fulano pode pensar assim?”

 

Penetraram fundo nas plataformas, ideias e discursos de seus candidatos, e sempre voltavam a se encontrar prontos e municiados para o combate. Das discussões políticas foi fácil chegar às questões pessoais e às acusações, como costuma acontecer. Estava desfeita a amizade de toda uma vida. Odiavam-se.

 

E foi assim que eu os deixei, quando saí em viagem. Ainda no exterior, fiquei sabendo que, apesar das pesquisas, os dois candidatos ficaram de fora, atropelados por um insuspeitado azarão.

 

Mas qual não foi a minha surpresa quando, na volta, os encontrei de novo amigos de infância? Eram gargalhadas, tapinhas e simulados socos no estômago que quase ultrapassavam os rígidos limites da brincadeira hetero.

 

Não querendo melindrá-los, perguntei a um conhecido como tinham conseguido reatar a amizade que parecia perdida. Ele me explicou que a mesma política que os havia separado, agora os juntara:

 

- O candidato de um - mosqueteiro da ética e paladino da honestidade - foi preso por envolvimento com bicheiros e remessas para contas em paraísos fiscais. O candidato do outro - guardião da família e defensor da cura gay - não aguentou a aflição e saiu do armário.

 

Este texto faz parte do Projeto Crônica de um Ontem e foi publicado originalmente em 03/11/2014.

Comentários

André Ferrer disse…
Retrato da nossa época, Albir.
Jander Minesso disse…
O que eu ri nesse parágrafo que começa com “como sabemos todos…”
Curti ver um lado novo da acidez albiresca aqui nesse texto!
Zoraya Cesar disse…
hahaha, Dom Albir, vc capturou na sua polaroid potente um flagrante da vida política dos últimos anos, e ainda nos deu um final feliz! Isso sim é dar nó em pingo d'água.

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